
Com o título “Agruras do cotidiano urbano”, eis artigo de José Borzacchiello, geógrafo e professor emérito da UFC. Ele procura retratar a vida do cidadão comum de uma Fortaleza com muitos contrastes. Confira:
Não sei seu nome. É mais conhecido pelo apelido e trabalhava nas imediações da praia do Mucuripe e morava em condições precárias às margens do riacho Maceió. Exigia pouco da vida e reclamava menos ainda. Vivia como auxiliar de mecânico fazendo limpeza em motores marítimos na Avenida da Abolição. Dizia entre os amigos que não era santo, mas frequentava as festas da Igreja da Saúde, acompanhava enterros e participava de velórios na vizinhança.
Aos sábados fazia as parcas compras da semana, preparava um peixinho e bebia um pouco mais. Assim era seu cotidiano. Nunca havia se perguntado se era feliz ou não. Com seu sorriso largo e papo agradável, era querido por todos. Por insistência da mulher, acabou comprando uma casinha num loteamento afastado a ser pago em longas e suaves prestações, conforme o anúncio veiculado em várias emissoras de rádio de Fortaleza.
Estranhou muito e se chateou quando constatou que a propaganda era enganosa. As prestações da casa aumentaram muito e achava que morreria antes de quitar todas. Sentia falta dos vizinhos, de seu coqueiro e dos mamoeiros que cresciam perto da bacia onde sua mulher lavava a louça. O silêncio lhe incomodava. Sentia-se fora do mundo, estranhava tudo e todos. Seu desespero aumentava na hora de sair para trabalhar. Antes, dormia tarde, acordava tarde e chegava justamente no horário em que o encarregado abria as portas da oficina.
Agora, na periferia distante, depende de dois ônibus, sendo que, para alcançar o primeiro, o da linha coletora, é obrigado a caminhar umas sete quadras. No terminal, num salve-se quem puder, enfrenta filas, empurrões e muita confusão. Quando a espera é demorada e tumultuada, para não se atrasar mais, sujeita-se a qualquer situação. Diz, conformado, que já chega cansado antes de começar a trabalhar.
Essa é a vida do cidadão comum, anônimo, de nossa cidade. Pressionado entre a casa melhor e a comodidade da proximidade, opta pelas periferias distantes e fica com a sensação que perdera a cidade. Esse processo se repete. Aconteceu em demasia nos processos de transferência compulsória de trabalhadores quando suas moradias eram demolidas e a remoção era forçada. Foi assim com pescadores transferidos da orla para o Conjunto Palmeiras, para o Alvorada, e muitos outros. E os grandes conjuntos habitacionais foram formando uma cintura periférica em torno de Fortaleza – Conjuntos José Walter, Araturi, Nova Metrópole, Industrial, Boa Esperança, Novo Oriente, Acaracuzinho, Jereissati I, II e III, Timbó.
Ao lado dos conjuntos, novos loteamentos se beneficiavam das infraestruturas neles instaladas. O sonho da casa própria alentava o enfrentamento das distâncias. No início a excitação pelo novo. As casinhas mínimas, com área construída limitada, era grande para famílias que acomodavam suas tralhas em qualquer cantinho.
O espaço se reduzia à medida que se ampliava o crédito – fogões, geladeiras, televisões, sofás e muita angústia no dia do vencimento dos carnês. O endividamento aumenta a amargura retratada nas fisionomias dos passageiros que lotam os ônibus que atendem a periferia de Fortaleza.
*José Borzacchiello da Silva
borza@secrel.com.br
Geógrafo e professor emérito da Universidade Federal do Ceará.