Com o título “A cidade mais violenta”, eis crônica do jornalista Henrique Araújo, no O POVO desta quinta-feira. Ele faz um belo jogo de palavras, comparações e contradições nesta Fortaleza, classificada, nesta semana, por ONG mexicana, como a mais violenta do mundo. Confira:
No mesmo dia em que uma pesquisa anunciou que Fortaleza é a cidade mais violenta do Brasil, resolvi que seria hora de andar de bicicleta novamente. Havia quase década e meia não pedalava. A última vez foi quase trágica: descendo uma ladeira, tirei as mãos do guidão. Lembram de Rose e Jack de braços abertos na proa do Titanic? Eu era ambos.
Até que um pedaço de ferro solto na pista desequilibrou o pneu dianteiro e eu caí. Lembram do Super-Homem voando para reverter o movimento de rotação da Terra? Eu era ele, num rasante bonito que só terminou muitos metros adiante, aos gritos e aplausos de uma plateia que, sem que eu soubesse, tinha assistido a tudo em êxtase, do outro lado da avenida.
Ironicamente, na cidade mais violenta do país, aterrissei do tombo na frente de uma farmácia. Fui atendido na calçada por uma moça que me perguntava com educação por que diabos eu tinha feito aquilo. Se eu tinha cinco anos. Que eu podia ter morrido. Que o curativo e os remédios para arranhões iriam custar R$ 13,50. Se era débito ou crédito. Se eu queria fazer o cartão da farmácia para pagar com desconto. Eu disse sim pra metade das perguntas e não pra outra metade, juntei os cacos da bicicleta e saí mancando uns quarteirões até em casa.
A mim mesmo, no entanto, respondi: fiz porque era bom. Não pretendia repetir, mas a sensação de estar sem as mãos numa bicicleta na cidade mais violenta do país é algo que todo mundo devia experimentar. Se puderem eliminar essa parte em que se esborracham no chão e depois se levantam claudicantes, vão se sentir realmente vivos na cidade mais violenta. Não é como correr na cidade mais violenta. Nem como andar de carro ou caminhar na cidade mais violenta. É como estar sem as mãos de bicicleta. Sem cair. Na cidade mais violenta.
Daí, ontem de manhã, resolvi que seria hora de me empoleirar no selim e dar uma volta nas ruas da cidade mais violenta. Fui pela Carlos Vasconcelos até a praia da cidade mais violenta. Peguei chuva e sol. Driblei carro e caminhão estacionados na ciclofaixa. Parei numa lanchonete e pedi uma coxinha feita por alguém que mora e ama na cidade mais violenta. E, finalmente, já na Praia de Iracema, fiquei à sombra do San Pedro, um prédio que estão querendo derrubar na cidade mais violenta. De repente, estava feliz na cidade mais violenta. Não era normal.
Na volta pra casa, descobri que tinha uma marca de bronzeado de camisa e que as pernas estavam uma tonelada mais pesadas. Inventei pra mim mesmo que era mais saudável ficar em casa e continuar sedentário na cidade mais violenta: nada de dores nem músculos repuxando. Isso sem falar na quentura que faz na cidade mais violenta. Então, juntando-se as duas coisas, o calor e a violência, o melhor seria uma ciclofaixa num shopping na cidade mais violenta. Isso era normal.
Na cidade mais violenta, a gente inventa mil desculpas para tudo. Para derrubar um prédio: perdeu o prazo para enviar o documento que tomba o edifício. Para evitar a rua: é muito perigosa. Para não comer coxinha: engorda. Tirando o quitute calórico, que de fato colabora para expandir a circunferência abdominal, o restante dos problemas admite o mesmo tipo de resposta que dei para minha mãe: talvez, não sei, quem sabe.
É possível que Fortaleza seja mesmo a cidade mais violenta do Brasil. Mas é possível também que, a depender do dia, da hora e do que as pessoas estejam dispostas a fazer, seja uma cidade como qualquer outra.
* Henrique Araújo,
Jornalista do O POVO.