Com o título “Os enxotados e invisibilizados”, eis artigo do professor Uribam Xavier, da UFC. Ele visitou o Grande Bom Jardim e suas várias comunidades e constatou que ali habita uma Fortaleza esquecida. Confira:
Alunos e professores dos cursos de Ciências Sociais e Arquitetura da UFC, do curso de Direito da Faculdade Christus e participantes do curso de defensores populares promovidos pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Herbert de Souza participaram, no sábado [16] , no birro do Bom Jardim, de uma aula de campo que foi uma oportunidade seminal para se conhecer, refletir e emergir na realidade urbana de Fortaleza. De fato, uma ocasião para se pensar sobre a condição humana e entender a falência e a falácia do sistema liberal representativo a partir da situação de miséria, empobrecimento e humilhação que são impostos aos que são jogados nas periferias das grandes cidades do país e do planeta.
No Grande Bom Jardim, são amontoados legiões de corpos vivos enxotados de áreas onde a especulação imobiliária enxerga uma oportunidade de reproduzir seu capital, muitas vezes em parceria com megaprojetos apoiados pelo governo, como no caso das remoções por ocasião da Copa do Mundo de 2014; amontoa também pessoas que foram enxotadas do campo em busca de melhores condições na capital, são pessoas que são invisibilizadas pelo poder publico numa perversidade cíclica, pois a cada eleição, devido a sua quantidade são objeto de discurso de campanha e se tornam duplamente invisíveis: escondem a dureza da miséria em que eles vivem e mostram equipamentos em maquete que não existem ou não funcionam como são apresentados na TV.
Na Comunidade do Marrocos, as ruas portam uma estética da miséria que facilmente pode ser enumeradas: iluminação deficiente, esgoto a céu aberto, suas cheias de lama, falta de pavimentação, lixos nas ruas, barracos precários, mosquitos, falta posto de saúde. Tornando invisível e adormecido pela precariedade de vida muitos moradores acham natural tal situação, há um conformismo sedimentado pelo desrespeito à vida. A maioria dos barracos são precários, mas eles querem sentir-se seguros e lutam pela regulamentação fundiária, pois as outras dimensões materiais eles se viram como podem, com criatividade e uma força de viver que não encontramos na classe media e nem nos ricos.
Na Comunidade Sete de Setembro, a mesma realidade, mas uma ocupação feita de forma menos desordenada, algumas casas são bem melhores. O Grande Bom Jardim é uma área aonde o espaço verde vem cada dia perdendo espaço, os moradores naturalizados na condição de miséria busca realizar o sonho de ter a propriedade mais importante no Capitalismo, a casa para morar. Na visão dos miseráveis e invisíveis o espaço territorial que lhe é mais acessível é para construir, construir para morar, ter um barraco é um luxo, logo tratam o meio ambiente como são tratados: sem respeito e sem valor. Durante a aula de campo o calor era imenso e nas ruas não encontrávamos plantas que fornecesse sombra e vento.
A região do Bom Jardim tem mais de 250 mil habitantes, se fosse um município, seria o quinto maior do Ceará. Recentemente a região recebeu 15 mil famílias que foram removidas e amontoadas em 13 residenciais ou favelas verticalizadas, são pessoas que foram enxotadas de seus lugares, tiveram suas vidas desarrumadas para que o local em que moravam fossem construído projetos de interesse do mercado e outra parte foram removidos de áreas de risco, como alguns que moravam nas margens do Rio Maranguapinho. Existe no Bom Jardim uma área verde que guarda a Lagoa da Viúva, uma lagoa bonita e que é utilizada como balneário pelos moradores e outros usos. Uma dos esforços de parte das organizações comunitárias é proteção da lagoa através da sua transformação em parque de preservação. Como um povo que foi sempre enxotado e invisibilizado, suas reivindicações, são para os poderes públicos e parlamentares invisíveis ou enxotadas.
Bem ter andado pelas ruas do Bom jardim foi mais do que um ato de ter todos nossos sentidos voltados para percepção de uma realidade de negação de condições de vida dignas e de respeito ao ser humano, foi uma oportunidade de nos questionar como aluno, como professor, como pessoa humana diante do sofrimento do outro, foi uma oportunidade para questionar a validade das teorias e saberes de sala de aula, foi uma oportunidade de conhecer pessoas que são lutadoras que batalha dia-a-dia para ter uma vida melhor, que são capazes de sorrir e receber os estranhos com alegria em suas comunidades.
* Uribam Xavier,
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC.