
Com o titulo “O esquema Serasa”, eis artigo de Demétrio Andrade, jornalista e sociólogo. Ele comenta a política de juros do País, que cria devedores quase escravos de um esquema perverso. Confira:
Sou daqueles que fica sem dormir quando está devendo algo. Desde sempre tento me organizar financeiramente para pagar as contas em dia. Mas, nesta loucura de vida, confesso que já atrasei pagamentos, sim. E o motivo nem sempre foi falta de dinheiro: esquecimento, na maioria dos casos. Afinal, elas – as contas – parecem que brotam do chão todos os meses. E fica difícil lembrar de pagá-las, por mais organizado que você seja.
Para mim, um homem que literalmente nasceu no século passado, a coisa se complica quando falamos nas “facilidades” de hoje em dia: pagamento pelo celular, pela internet, débito em conta, no caixa eletrônico etc. Ocorre que muitas contas não “chegam” mais pelo correiro. Vem por e-mail numa caixa lotada. Ou às vezes nem chegam. Aí você é pego de surpresa com seu nome no Serasa ou em algum cartório de protesto de títulos.
Deleuze, pensador francês, que desenvolve o conceito de “sociedade de controle”, explica que ela “funciona por redes flexíveis moduláveis, como uma moldagem auto deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”. De fato, o controle numa sociedade de mercado se dá, basicamente, por uma permanente manutenção do homem como um ser endividado.
Nada melhor pra uma instituição financeira – notadamente bancos e cartões de crédito – do que perpetuar o pagamento de juros de uma dívida. O bom pagador não interessa. Muito melhor é ter um escravo dos juros: aquele que parcela as dívidas do cartão ou entra no cheque especial. Isso aí eu já sabia. Mais revoltante, porém, é saber que instituições como o Serasa e os cartórios também entraram nessa. Sendo mais exato: cobrança virou um negócio lucrativo.
Recebi recentemente, pela 2a vez, em toda minha vida, uma carta do Serasa. Como da primeira vez, o documento não dizia nada. Colocava o nome da empresa credora e o CNPJ, não discriminava qual era a dívida (dava somente o valor) e, o principal: não oferecia qualquer alternativa de pagamento. Nenhum boleto, nenhum número de telefone ou contato. Orienta entrar o site do Serasa, no qual eu só tenho acesso às informações SE PAGAR pela consulta ou me associar. Traduzindo: você tem que adivinhar – ou pagar para ter o direito de saber o que está devendo.
Repare: à empresa interessa o pagamento, mas, de preferência, protelando a dívida (e os juros). A referida empresa tem meu telefone, e-mail, whatsapp, sabe meu endereço. Nunca me acionou. Nenhuma cobrança. O Serasa, como já disse, faz o mesmo. O cartório fica na espreita que o tempo passe pra também ganhar o dele. Um vergonhoso esquema que deve render, acredito, uma bela fortuna. Cabe uma boa matéria jornalística. Cabe um posicionamento da OAB. Mas, antes de qualquer coisa, cabe cobrança, pelo visto, por mais vergonha na cara.
*Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo.