Em artigo no O POVO deste sábado (8), a professora universitária, psicóloga e psicanalista Sabrina Matos afirma que o ódio aos nordestinos, explicitado nas redes sociais, aponta na verdade para um ódio à democracia. Confira:
Em tempos de discursos tão inflamados e carregados de ódio, de manifestações propondo o impeachment da presidente e a intervenção militar, de xingamentos à chefe da nação (lembram da cerimônia de abertura e encerramento da Copa? – à época fiquei imaginando se algum alemão xingaria sua primeira ministra daquela forma ou um inglês sua rainha) entre tantas outras cenas penso ser difícil não tentarmos buscar explicações para a origem e o significado desses afetos. Muitos entrelaçamentos são possíveis: da nossa história colonial, à recente democratização, passando pelo ódio à democracia. Como a castração impera traço aqui um olhar a partir do “Mal-estar na civilização” de Freud entrelaçando-o a um outro igualmente fabuloso “Ódio à democracia”, do filósofo Rancière.
Aprendemos com o velho Sigmund que por sermos seres de linguagem toda completude é impossível e que a ordem civilizatória aponta para um sacrifício pulsional de cada um de nós para que a civilização possa desenvolver-se. Como as tendências destrutivas e anti-sociais demarcam a condição humana o sofrimento (o mal-estar) é inevitável.
A ideia de que o país ficou dividido após as eleições e que precisa ser unificado é de uma ingenuidade tocante. Primeiro porque as diferenças sempre existiram: seja dos ricos do sul e sudeste e dos pobres do norte e nordeste. Dos brancos e dos negros, dos homens e das mulheres. Dos cristãos e dos judeus. Dos espanhóis em relação aos portugueses, dos italianos do norte e os do sul. Dos torcedores do Ceará e os do Fortaleza. Segundo porque a ideia de unificação é a mesma do nazismo. As diferenças, sejam elas quais forem, são necessárias e demarcam uma das razões de ser da democracia.
Os discursos de ódio aos nordestinos explicitados nas redes sociais apontam na verdade para um ódio à democracia que se apresenta como ódio ao povo e seus costumes, à sociedade que busca igualdade, o respeito às diferenças, o direito das minorias. Sabemos que a individualidade é uma coisa boa para as elites, mas torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso, não é mesmo? Não consigo ver nas recentes manifestações ocorridas na capital paulista a defesa de interesses da civilização e sim a defesa de interesses muito particulares.
A teoria da civilização de Freud considera a vida em sociedade como um compromisso imposto. As próprias instituições que funcionam para proteger a sobrevivência da humanidade também geram seu mal-estar. A agressividade é uma fonte de prazer que os seres humanos relutam em renunciar após a terem experimentado. Não se sentem bem sem ela, dizia ele. A agressividade serve como complemento ao amor: os laços libidinais que unem os membros de um grupo no afeto e na cooperação serão fortalecidos, se o grupo tiver pessoas de fora a quem possa odiar. É o narcisismo das pequenas diferenças. Os homens parecem encontrar um gosto especial em odiar e perseguir, ou pelo menos ridicularizar, seus vizinhos mais próximos.