Com o título “Ulysses Guimarães, 20 anos de ausência”, eis artigo que manda para o Blog o presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado e presidente estadual do PMDB, senador Eunício Oliveira. Ele homenageia a memória de Ulysses que saiu da cena política brasileira há 20 anos. Confira:
Há quem defina o “gênio” como a pessoa que mira e atira em um alvo que ninguém mais enxerga – e acerta! Ulysses Silveira Guimarães – o Senhor Diretas, Senhor Constituição e, claro, Senhor PMDB, cuja morte trágica e misteriosa, ao lado de dª Mora, companheira de amor e de vida, há exatos 20 anos, nos privou, merece como ninguém o título de gênio maior da política brasileira.
Para marcar esse tempo, nada melhor do que lembrar a história que ele construiu. Na esteira das eleições de 1970, realizadas sob repressão e censura, e que resultaram em séria derrota para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Ulysses, recém-conduzido à presidência da legenda, foi capaz de ‘ler’ no grande número de abstenções, votos nulos e brancos a janela de oportunidade que, anos depois, levaria às grandes vitórias da oposição e o início da derrota final do regime militar.
Dr. Ulysses, com a paciência dos autênticos sábios, ensinou que naquele ‘anti-voto’ escondiam-se a frustração e o descontentamento que cumpria à oposição transformar em força positiva de esperança e mudança. Daquela leitura brotaria, em 1973, sua ‘anticandidatura’ à Presidência da República. Na eleição indireta, por um colégio eleitoral de cartas marcadas, a derrota era líquida e certa. Mesmo assim, o anticandidato, seguro de que navegar é preciso, percorreu todo o país de ponta, criando fatos políticos que atraíam a atenção da imprensa e driblavam a vigilância dos censores.
Na Convenção Nacional emedebista, em setembro de 1973, declarou: “o paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial”. E, logo adiante: “não é o candidato que vai percorrer o País. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição.” Sua estratégia de resistência democrática floresceu e frutificou no pleito de novembro de 1974, com a oposição elegendo 15 das 21 cadeiras do senado, além de 165 entre 364 deputados federais. Um plebiscito contra a ditadura.
Nos anos seguintes, sempre reeleito para a presidência do MDB, liderou seus companheiros na ocupação de todos os espaços e na utilização de todos os canais de comunicação com uma sociedade civil cansada do arbítrio. E foi no dia 13 de maio de 1978, em Salvador, em campanha pelos candidatos do PMDB, que o dr. Ulysses, orador eloquente e dotado de presença de espírito, produziu uma frase histórica. Diante do cerco policial, fulminou: “respeitem o presidente da oposição! […] soldados da minha pátria: baioneta não é voto, cachorro não é urna!”
Àquela altura, passados o período mais sombrio da repressão, da tortura, da morte e dos desaparecimentos, a cúpula militar constatou o alto preço moral que a politização da caserna e a militarização da política impuseram a uma instituição baseada na hierarquia e na disciplina. Passava o regime a falar em liberalização, em distensão “lenta, gradual e segura”. Na verdade, isso traduzia um estratagema de afastamento do governo sem abandono do poder, cujo sucesso dependia do estilhaçamento da frente oposicionista então abrigada sob o manto do MDB.
O resultado foi a reforma partidária de 1979/80. Esse remendo casuístico, a par de fomentar o surgimento de uma oposição ‘domesticada’, obrigou as agremiações a incorporar a palavra ‘partido’ às suas siglas, ao que o dr. Ulysses reagiu com astúcia, limitando-se a colocar um ‘p’, de povo, na frente das familiares ’m,d,b’.
Ulysses tinha a mais forte convicção de que nem mesmo a usina militar de casuísmos era capaz de bloquear o movimento irresistível rumo da redemocratização. Como sempre, estava certo: as eleições de 1982, marcadas pela volta da escolha dos governadores pelo voto popular, deram mais uma vitória à oposição em vários Estados, com os peemedebistas Franco Montoro, Tancredo Neves, José Richa e Íris Resende, enquanto o trabalhista histórico Leonel Brizola, de volta do longo exílio desde 1979, com a conquista da anistia, foi conduzido ao Palácio Guanabara pelo povo do Rio de Janeiro.
E ainda estava reservado a esses novos governadores um papel essencial, no fornecimento de apoio político ao próximo ato da redemocratização: a campanha pelas eleições diretas para Presidente da República, as ‘diretas já’! A proposta de emenda constitucional apresentada por um jovem e aguerrido deputado federal mato-grossense, Dante Martins de Oliveira, ensejou as maiores manifestações populares de toda a nossa história, cobrindo o Brasil de amarelo.
O amarelo das diretas transformou-se na nova cor da esperança e iluminou os palanques onde as palavras e os gestos do dr. Ulysses assumiam absoluto e primeiríssimo plano. No dia 16 de abril de 1984, no último megacomício, realizado no Vale do Anhangabaú, no centro da capital paulista, 1,5 milhão de pessoas disseram ‘presente’ ao chamado da democracia na voz inconfundível do dr. Diretas.
Contudo, a ditadura, mesmo desgastada, desmoralizada e deslegitimada, ainda não estava derrotada. Na sessão do Congresso do dia 25 de abril daquele ano a Emenda Dante recebeu 298 sins e 65 nãos, portanto, menos que os 325 votos necessários. A sucessão do general-presidente João Figueiredo, tal como programado nas planilhas do regime autoritário, seria mesmo conduzida no circuito fechado do Colégio Eleitoral.
A despeito da derrota, não tardaria a ficar claro que o saldo das diretas não havia sido em vão. Rapidamente, a palavra de ordem passou a ser ‘Tancredo Já!’, e a vitória do discreto e hábil estadista mineiro na última eleição indireta só seria possível àquela mobilização. Nos momentos trágicos que caracterizaram a véspera do que seria a posse do novo presidente, a indiscutível autoridade moral de Ulysses Guimarães, àquela altura já à frente da Presidência da Câmara, foi decisiva para orientar a solução política e constitucional do impasse, com a investidura do vice na chapa entre o PMDB e a Frente Liberal, o nosso companheiro José Sarney.
O longo, complexo e rico processo de reconstitucionalização do País correspondeu ao apogeu do prestígio e do carisma do nosso velho e querido timoneiro, que então acumulava as Presidências da Assembleia Constituinte, da Câmara e do PMDB. O choque de interesses e ideologias que, longamente impedidos de se expressar durante a noite escura do arbítrio, transbordaram para o espaço democrático do Parlamento.
Hoje, é mais que consenso entre os analistas, historiadores e participantes daquele momento singular, que sérios e numerosos impasses então surgidos não teriam chegado a bom termo sem o concurso da liderança indisputável de Ulysses Guimarães. É como se as suas magníficas palavras, quando da promulgação da Constituição de 1988, que no próximo ano completa 25 anos, ainda ressoassem: a nova carta “certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Mas, quanto a ela, discordar, sim; divergir, sim; descumpri-la, jamais.”
Estava, enfim, cumprida a maior missão que seu destino e, também, a sua virtude cívico-política lhe haviam reservado. Porém, o espírito inquieto daquele autodenominado “caçador de nuvens” definitivamente não fora feito para o repouso. Pouco depois, lá estava ele engajado em mais uma busca, dessa vez do que poderíamos muito bem considerar o ‘santo graal’ da política brasileira: a Presidência da República, na eleição de 1989.
Formo entre aqueles que, até hoje, consideram que os 4,43% dos votos obtidos pelo dr. Ulysses não fizeram juz, nem de longe, ao seu contributo precioso à nossa civilização democrática. Mas, sua envergadura humana, sua generosidade natural, sua paixão incondicional pelo Brasil e seu povo não permitiram que ele se curvasse ao desânimo.
Ao desaparecer para sempre no mar de Angra dos Reis, ao lado da esposa e do casal Severo Gomes (seu dileto amigo, outro honrado e indispensável guerreiro da democracia) naquele fatídico dia 12 de outubro de 1992 – motivo deste artigo para marcar seus 20 anos –, estava, como sempre, comprometido de corpo e alma com a campanha pelo parlamentarismo.
A despeito da falta provocada pela sua morte, lacuna que jamais foi preenchida, restou a certeza de que ele partiu como queria, pois já havia avisado: “Eu não quero morrer de raiva, nem de mágoa, nem de doença. Eu quero morrer na luta”. Cabe a todos nós, detentores de qualquer parcela de responsabilidade decisória na esfera pública, mas sobretudo a nós, militantes do partido que ele fundou e, como ninguém, engrandeceu, dedicar o melhor do nosso esforço, da nossa energia, da nossa capacidade a honrar seu exemplo, continuar sua obra.
* Senador pelo PMDB do Ceará, Tesoureiro do PMDB.