
Com o título “Liberem suas cinzas na curva do rio”, eis artigo do juiz estadual Mantovanni Colares que faz uma homenagem à memória do amigo, o jornalista Lustosa da Costa, que nos deixou nessa quarta-feira.
A morte do Lustosa nos sacudiu desprevenidos, tal como uma febre terçã, pois embora sabedores dos seus contratempos de saúde, acreditávamos nós os amigos em sua promessa de romper a barreira do século de existência; afinal, ele anunciava sua inabalável aptidão de longeva caminhada, e de tão jovem em seu espírito e sorriso largo, acabou por nos convencer da fortaleza que era seu coração, coração imenso, acolhendo de maneira sempre gentil a legião de amigos e admiradores, e estávamos absolutamente certos da aguardada noite de lançamento de seu centésimo livro, a coincidir com o apagar de no mínimo cento e dez velas da natividade.
Infelizmente o descompasso entre nosso desejo e a cruel realidade transformou o dia 3 de outubro de 2012 numa espécie de amarga quarta-feira de cinzas. É sempre um soco no estômago quando lemos a notícia que não se deveria permitir publicar: a perda de um grande talento, um enorme profissional e mais gigante ainda como ser humano.
Há de se contrariar o Lustosa, que deixou como espécie de testamento sentimental o desejo de não ser homenageado após sua morte. Ele almejava a benquerença em vida; o que acredito tenha sido materializado. Mas isso não impede de se opor ao seu intuito de guardar na gaveta do esquecimento sua vida e sua obra. Impossível fugir do dever de se reconhecer, a todo instante, mesmo quando a luz se esvai no plano da convivência, a sua inteligência privilegiada, o seu espírito moleque adornado de provocante ironia, as suas letras firmadas como um dos maiores talentos daquele que foi o paraibano mais sobralense de todos.
O outro desejo dele – de ter suas cinzas liberadas ao sabor do vento nas curvas do rio Acaraú –, essa moção sentimental não só deve ser atendida com toda a solenidade que o momento impõe, como representa, a meu sentir, sua poética maneira de se despedir de todos nós.
Lembrei-me, a propósito, de um livro publicado no início dos anos 1970, de um historiador chamado Dee Brown, que narra o sentimento dos índios norte-americanos traduzidos pelos colonizadores da então nova Inglaterra como sendo um “destino manifesto”, representado pela aceitação de várias tribos, principalmente a dos Navajos, quanto ao destino de se quedar ao domínio do progresso, e apesar da luta incessante, das batalhas gloriosas, aquela notável raça acabou por mostrar a coragem também em saber o que lhe aguardava, e por isso o título do livro é: Enterrem meu coração na curva do rio, uma espécie de frase-testamento de quem sabe que a liberdade é possível mesmo após a morte, porque indicar onde se almeja descansar o sentimento (o coração) junto ao rio, o rio que corre, o rio que representa a vida, é da mais comovente dignidade.
Assim também o fez nosso Lustosa, sabedor do destino que se lhe impunha, mesmo com sua luta, deixou seu sussurro em forma de desejo, de permanecer por inteiro no rio Acaraú.
Em meus sentimentos, além de saber que naquele rio estará a presença do filho mais que amado de Sobral, me vem de modo lampejante uma imagem que guardo desse grande jornalista, quando certa feita, numa solenidade em Brasília, após circular e falar com todos naquele seu jeito tão cativante, ele se despediu de mim, saiu em seu andar apressado, e eu simplesmente permaneci fitando-o, ele caminhando em seu rumo aparentemente incerto, e naquele momento me veio uma poética metáfora de que aquele homem parecia um menino desamparado, em busca do que ele mais gostava de receber: o carinho e a homenagem dos amigos.
Ainda estou a mirar o menino caminhando e, acredite, Lustosa tão querido, que o carinho e a homenagem continuarão a nos motivar a lhe render todas as boas lembranças de seu exemplo, na mesma intensidade com que emana a força das águas daquele rio, o Acaraú, doravante berço de suas cinzas.
Mantovanni Colares,
Juiz estadual.