Eis artigo do engenheiro Cássio Borges sobre o projeto da transposição do rio São Francisco, tocado pelo governo federal. Intitulado “O Nó Górdio da Transposição II”, traz novas considerações sobre o empreendimento que se propõe a ser uma revolução na área hídrica do Nordeste, proporcionado o chamado desenvolvimento sustentável. Confira:
Somente depois que tive a honra de participar de uma importante reunião do Colégio de Presidentes dos Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura (CREA`s) do Nordeste, em setembro último, em Salgueiro-PE, é que tomei conhecimento do que vinha sendo urdido nos bastidores do Governo Federal (Ministério da Integração Nacional e ANA-Agência Nacional de Águas) quanto à intenção de ser criada uma empresa estatal para ser a Operadora Federal do Projeto de Interligação do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional. Sobre esse assunto, escrevi um artigo intitulado “O Nó Górdio da Transposição”, publicado neste Blog do Eliomar de Lima, conceituado jornalista cearense, no dia 25 de outubro e, mais recentemente, no Blog InfoBRASIL (infobrasil.spaceblog.com.br), no site do NEHSC-Núcleo de Estudos de História Social da Cidade (www.nehscfortaleza.com), entidade ligada à PUC de São Paulo e, ainda, no visitado Blog do Borjão (blogdoborjao.blogspot.com).
No último dia 22, o Jornal “A Folha de São Paulo” abordou o tema da transposição em artigo de autoria da jornalista Sofia Fernandes no qual ela afirma: “Da torneira do nordestino atendido pela transposição do rio São Francisco vai pingar a água mais cara do país. O Conselho Gestor do Projeto de Integração do São Francisco avalia cobrar dos Estados atendidos pela obra R$ 0,13 por mil litros de água. O preço médio cobrado em outras bacias hidrográficas pelo uso da água é de R$ 0,01 a R$ 0,02 por mil litros. O valor mais elevado do projeto de transposição, afirma o governo, se deve à complexidade do projeto de transposição e ainda porque a Agnes será a responsável pela captação e pelo bombeamento da água”. (Agnes é a sigla da empresa que se pretende criar).
Não há, e nunca houve, de minha parte nos 36 anos que venho defendendo esse projeto, a ilusão de que a água a ser transposta do Rio São Francisco tivesse um custo acessível a ponto de concorrer, economicamente, com as águas das chuvas acumuladas nos açudes do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Mas, com certeza, o valor de R$ 0,13 por mil litros de água, referido pela citada articulista da Folha de São Paulo é, infinitamente, mais em conta do que os R$ 7,00 por mil litros de água pagos pelo Governo Federal aos carros-pipa em épocas de estiagem (depende da quilometragem percorrida, podendo este valor ser considerado para uma distância em torno de 15 quilômetros). A cada seca são mais de R$ 2,5 bilhões os dispêndios da União com obras inexpressivas e assistência emergencial, dentre as quais o fornecimento de água para as populações necessitadas. Valor este, diga-se de passagem, gasto numa única seca, representa a metade do que está orçado para a implantação de todo o Projeto de Interligação do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional.
Portanto, a água da transposição poderá ser de fato, a mais cara do país (não se discute isto agora), afinal o projeto é constituído de duas potentes estações de bombeamento nas margens do Rio São Francisco, para falar somente nestas, uma no Eixo Norte com um recalque de 180 metros de altura topográfica e a outra no Eixo Leste, com 300 metros. Só estes dois projetos já deverão ter uma diferença substancial no custo da água de cada uma. Isto sem se falar que a água a ser transposta do Rio São Francisco deverá percorrer cerca de 800 quilômetros de canais adutores e principais de onde, através de novas estações de bombeamento, partirão extensas redes de tubulações para fazê-la chegar até os locais onde será efetivamente utilizada.
Entretanto, o que a sociedade tem que saber é que esse projeto tem a específica finalidade para dessedentação humana e animal. O que isso significa? Significa dizer que o ele somente vai funcionar, e ser necessário, em períodos críticos de baixas precipitações pluviométricas como, por exemplo, os de 1927 a 1933, 1950 a 1959, 1979 a 1984 e em outros de menor duração, de dois, três ou cinco anos consecutivos. Estatisticamente, o tal projeto somente vai funcionar em 30 ou, no máximo, 40% do tempo. Em outras palavras o sistema de transposição, a cada dez anos funcionará apenas em quatro. Certamente, o projeto somente será acionado quando tivermos precipitações pluviométricas abaixo da média histórica. É claro que se tivermos bons anos de chuva, como os de 2004 a 2009 (seis anos) o Projeto de Integração do Rio São Francisco ficará praticamente ocioso, ou com funcionamento minimizado. Importa dizer que a referida estatal que, segundo fonte extraoficial, deverá absorver cerca de 900 funcionários e mais de uma dezena de cargos em comissão, ficará semi-ociosa em 60% do tempo, ou melhor, dizendo, ficará quase ociosa anos seguidos cuidando apenas da manutenção dos canais e dos equipamentos hidráulicos. Esta é uma realidade que não pode e não deve deixar de ser considerada…
Pelo o que acima foi exposto, é fácil concluir que esse empreendimento não é autossustentável como se quer dar a entender e o custo final da água irá ser substancialmente onerado, caso a referida estatal seja criada com toda a sua estrutura burocrática, administrativa, física e financeira sendo mantida pelos recursos arrecadados pela cobrança do uso da água, como anunciam os técnicos do Ministério da Integração Nacional e a ANA-Agência Nacional de Águas. Pura ilusão! Não há outro caminho a ser seguido para evitar a inviabilização desse projeto, senão o de entregá-lo a uma Diretoria do DNOCS que assumiria a responsabilidade por sua macro-gestão (canais adutores e principais). Aos organismos estaduais caberia o encargo de fazer a cobrança pelo uso da água de seus usuários.
Finalmente, ainda me referindo ao artigo publicado na Folha de São Paulo, devo ressaltar que o maior significado desse Projeto de Interligação do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional é a sinergia que ele vai promover no aumento das disponibilidades das águas armazenadas nos açudes da Região, podendo ser da ordem de 30% a 40%. Um açude como o Orós, por exemplo que, segundo os critérios de dimensionamento hidrológico adotados pelo DNOCS, tem a sua disponibilidade atual estimada em 12 m3/s, poderá ter sua vazão aumentada para algo em torno de 18 m3/s.
Não haverá mais aquela preocupação dos técnicos do DNOCS de “manter uma reserva estratégica de água nos açudes para garantir” o suprimento eventual de abastecimento humano e animal de água em casos emergenciais de cunho climático. No caso dos açudes secarem ou estiverem na iminência de secar, o Projeto de Integração do Rio São Francisco garantirá este suprimento que é prioritário de acordo com o nosso Código de Águas, de 1933. Aí está uma das razões maiores desse projeto, qual seja, o aumento da eficiência hidrológica das águas armazenadas nos açudes do Nordeste. Desta forma, o custo da água a ser transposta do Rio São Francisco irá ser diluído no aumento das disponibilidades hídricas dos açudes da Região, as tornando mais acessíveis.
Um influente membro do Partido dos Trabalhadores, embora me dando inteira razão na tese que defendo, advertiu-me da possibilidade de o Governo Federal optar pela CODEVASF-Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco para ser a Operadora Federal do Projeto de Interligação do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional. Disse-lhe que, se isto vier a ocorrer, será mais um grave engano que se comete em relação a esse Projeto. Argumentei-lhe que a CODEVASF sempre teve a sua atividade restrita à irrigação no Vale do Rio São Francisco onde a água é abundante, visto que o rio é perene. Lá se fala em vazão regularizada da ordem de 2.060 m3/s. No resto do Nordeste, esse parâmetro não chega a casa dos 15 m3/s, como é o caso do Açude Orós com apenas 12 m3/s. É preciso muito conhecimento técnico-científico para saber usar racionalmente tão reduzido valor. O DNOCS tem mais de 100 anos lidando teórica e praticamente com este problema.
Em suma, o DNOCS, desde os primórdios de sua existência, tem tido a sua missão principal o de “fazer água” que nunca foi a preocupação da CODEVASF. Para não me alongar mais na defesa desta tese, a CODEVASF não sabe o que é um “um reservatório de estiagem”, portanto não saberia dimensioná-lo. Jamais teve a preocupação de fazer uma medição de vazão em rios e, certamente, não deve ter pessoal especializado para este tipo de serviço, muito importante para as regiões semi-áridas. Não deve ter o conhecimento profundo da evaporação e sua influência nas disponibilidades hídricas da Região e também não deve saber o alcance e o exato significado do “m3/s”, que foi e continua sendo o principal parâmetro que sempre justificou a existência do DNOCS até os dias atuais e o tornou conhecido em todo o Mundo científico como um dos organismos mais eficientes atuando em regiões semiáridas.
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Cássio Borges é engenheiro especializado em hidrologia e recursos hídricos e Diretor Técnico Científico da Sociedade dos Amigos do DNOCS-SOAD.