Com o título “Com Havana ao telefone”, eis artigo do escritor e publicitário Ricardo Alcântara. Ele aborda a morte de Fidel Castro , a partir de um telefonema travado com amigo cubano. Confira:
Diante dos acontecimentos, telefonei para um amigo cubano que vive em Havana. Como a maioria de seu povo, deseja reformas que ampliem maior acesso ao consumo, mas não confia na índole dos norte-americanos – os ‘imperialistas”, como lhes ensinaram desde cedo nos bancos escolares. Ele, um poeta, me disse que “há muita tristeza espalhada pelo ar de Havana”, apesar da morte de Fidel ter sido aguardada por toda uma década.
Sempre muito brilhante, observou com ironia que “morrer devagar foi a última grande contribuição do Comandante aos cubanos”: os preparou, fê-los crer que a revolução é maior que seu mentor. De modo que o dia seguinte foi, na sua própria definição, “de pesar, mas também de serenidade”
Não há, contudo, muito otimismo na ilha: o bolivarianismo venezuelano, maior aliado do país no momento, naufraga a olhos vistos no exato instante em que, ao Norte, a ascensão do conservador Trump deita sombra espessa sobre a proveitosa distensão iniciada com Obama. “Además”, alertava-me, as reformas iniciais, conduzidas “com excessiva prudência” por Raúl Castro, não se mostram suficientes para dinamizar a economia, nem sequer inspirar o ânimo popular, o que já seria valioso num ambiente acometido de estagnação e, em alguns aspectos, franca decadência. Na sua confiável percepção, “o regime ganha tempo, apenas. Não parece, ele mesmo, convencido do rumo que toma”.
“Nós sabemos”, disse mais, “que precisamos ligar as máquinas” – uma metáfora para o ambiente de riscos em uma sociedade de mercado – “mas fomos doutrinados por 50 anos a não confiar nos bons sentimentos de quem tem muito dinheiro”. Comentei que convinha mesmo não abrir muito a guarda. Disse a ele que, no Brasil, a burguesia não é uma casta reconhecida por tradições muito generosas. “Você sabe”, eu disse, “a colonização foi um estupro. E eles continuam apreciando muito essa modalidade”.
Meu amigo sabe que não há saída, senão deixar que os norte-americanos retornem à ilha para fazer fortuna porque teriam as melhores vantagens competitivas, financeiras e geopolíticas, diante do resto do mundo quando “o prato vier à mesa”. Ele concordou, não sem ressalvas: “Mas, desta vez, isto não pode mais se dar à custa da nossa saúde e ao preço da ignorância dos nossos netos”. Sim, é este mesmo o desafio, mas quais são as garantias? – perguntei. Meu camarada ‘habanero’ emudeceu.
Ao fim da ligação, mostrou-se surpreso que um profissional liberal brasileiro como eu possa pagar confortavelmente uma ligação internacional de quinze minutos: “Eu teria que trabalhar todas as noites do próximo ano para honrar esta dívida”, disse. E não exagerou. Ainda deu tempo de me convidar para escrevermos a quatro mãos um livro em forma de diálogos como aquele, comentando tudo isso – ele sob codinome, ‘por supuesto’, pois vive, sim, numa ditadura. Gostar da ideia, até gostei, mas lhe fiz uma ponderação: “Seria uma farsa. Iríamos tentar a todo tempo ficar escondendo um do outro a angústia que tudo isso nos provoca”.
Melhor não. “Somos poetas, esse sadismo sociológico só nos maltrata”. Conversemos, apenas. Ele concordou e agradeceu o carinho do meu telefonema que muito houvera lhe surpreendido, já que não nos falávamos desde aquela noite quente de Abril em que varamos a madrugada no Malecón trocando confidências e jurando o imperialismo de muerte. Eu já quase desligava o telefone, quando meu amigo cubano cedeu à infeliz pergunta: “Y Lula, como está?”. Que mais poderia eu dizer: “La mierda de siempre!”, e desliguei.
*Ricardo Alcântara.
Escritor e publicitário.