Com o título “O sucesso como fetiche”, eis artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade. Mais uma reflexão sobre tema dos mais atuais – o fetiche, em todos os setores. Até na política. Confira:
O significado do conceito de fetiche na obra de Freud tem intersecção com a sexualidade humana: um objeto ou uma parte do corpo influencia a libido como uma (falsa) representação do todo. Esta percepção da troca da “parte pelo todo”, foi, posteriormente, dentro de um contexto histórico-sociológico-econômico, reelaborado por Marx. Para o pensador alemão, o fetiche ajuda a manter o modo de produção capitalista pois cria uma ilusão que naturaliza a desigualdade dentro do ambiente social.
O fetiche da mercadoria opõe-se à utilidade do produto, que deveria ser, essencialmente, seu critério de valor. Quantos de nós temos a fantasia, por exemplo, que o dinheiro resolverá nossos problemas, quando, do ponto de vista da sua utilização, a moeda em si não tem valor algum. O dinheiro serve somente para ser trocado por outras coisas. Muitas vezes somos impelidos a adquirir um determinado objeto projetando nele a solução de algo que, por conta da ilusão do fetiche, não percebemos que está dentro de nós, e não no mundo exterior.
Dia desses, zapeando pela tela, me deparei com um filme – bem ruim, diga-se de passagem – onde um escritor vendia, literalmente, a alma ao diabo para obter sucesso na carreira. O capiroto, em forma de bela mulher, cumpre o prometido. Uma determinada editora modifica seu livro – personagem principal, título, narrativa etc. – para torná-lo mais “palatável” aos interesses do mercado. Estratégias de marketing e assessoria de comunicação agressivas o fazem famoso em poucas semanas. Mas a que custo?
O enredo é antigo. Fausto de Goethe que o diga. Mas não vou entrar em discussões religiosas ou éticas. O que chama a atenção no filme é que o escritor se dá conta que seu livro é ruim e, apesar do seu alcance midiático extenso, recursos financeiros e demais vantagens advindas, ele não se sente feliz. Por um motivo simples: a essência de sua atividade foi deturpada. O livro não só não era dele, mas também o envergonhava.
Tenho a nítida impressão que hoje a situação está bem pior. Até porque, a rigor, a palavra vergonha também virou um fetiche. Todos os dias vejo profissionais ruins se vendendo como bons, sem corar. No tocante às inúmeras derivações artísticas, o sucesso deixou de ser consequência de um bom trabalho para virar condição. Vou ser mais exato: um músico não faz sucesso porque é bom, ele é bom porque faz sucesso. Um político conhecido, por exemplo, por pior que seja, principalmente numa eleição proporcional, tem maiores chances de se eleger que um iniciante. A lógica, invertida pelo mercado, do sucesso como critério de avaliação tem nome: fetiche.
As consequências são por demais danosas. Tornar-se mais conhecido – e somente isso – pode significar um passo decisivo para o reconhecimento. Desta forma, com o desenvolvimento e a influência de diversas mídias, e com plataformas na internet servindo de palco para as mais variadas bizarrices, a mediocridade de quem cai no gosto popular passa a imperar em todas as frentes: política, futebol, arte, economia, comunicação. Cada vez mais as pessoas tendem a “naturalizar”, como diz Marx, a baixa qualidade, e, mais que isso: por falta de informação e análise, tendem a colocar tudo no mesmo saco, inclusive a produção de maior consistência.
Coisas sem valor, essencialmente nulas, com vida útil visivelmente datada, ganham contornos grandiosos, ares respeitosos e preços abusivos. Perceba: nada contra quem gosta de coisas efêmeras e ruins. É o preço a pagar pela convivência democrática. Mas querer pintar um quadro talentoso de um medíocre qualquer, com base no fetiche do sucesso, para se iludir da própria ignorância é abusar da inteligência do outro. As coisas boas vão além do sucesso e do momento. As coisas realmente boas são eternas.
*Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo.