Com o título “Lula e João Paulo II: o juízo sem valor”, eis artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade, que aborda casos envolvendo o ex-presidente Lula e o falecido João Paulo II e uma certa diferença entre juízo de fato e juízo de valor. Confira:
Sempre procuro deixar claro para os meus alunos de Jornalismo a diferença entre juízo de fato e juízo de valor. A rigor, a apuração noticiosa deveria ater-se somente à primeira modalidade, ou seja, descrever, narrar o fato como ele aconteceu, de forma objetiva, ou tentar chegar ao mais próximo disso, já que, na maioria dos casos, o trabalho do repórter é o reconstituir acontecimentos passados, nem que seja há poucos minutos.
Peço inclusive para excluir da matéria quaisquer adjetivos e advérbios, usando-os somente quando for absolutamente necessário. Explico que, do ponto de vista gramatical, estas categorias morfológicas postam-se junto a substantivos e verbos para lhes atribuir qualidades. Tais qualidades, evidentemente, são provenientes de juízos de valor. Estes valores, por sua vez, são determinados pelos critérios que advêm de nossa subjetividade, nossos conceitos, ideologias e visões de mundo.
Tentando ser mais claro, ao abrir a janela e afirmar que “está chovendo”, você está fazendo um juízo de fato, relatando um episódio que está acontecendo. Porém, se sua frase for “está chovendo muito”, você está atribuído à chuva uma qualidade, baseado no seu referencial subjetivo. Uma chuva que pra nós aqui, de Fortaleza, parece um dilúvio, pode ser interpretada como um evento menor por alguém de Belém, por exemplo, acostumado a uma outra dinâmica climática. O correto, do ponto de vista jornalístico, seria colocar a quantidade de água medida em milímetros. A interpretação da intensidade, no caso, caberia a quem tivesse acesso à notícia.
Explico tudo isso para lamentar o desvirtuamento desta regra por muitos de meus colegas de profissão. Entre milhares de casos, vou citar apenas dois. O primeiro refere-se à tentativa da Operação Lava-Jato de incriminar o ex-presidente Lula. O petista foi acusado de possuir um triplex e um sítio que depois se comprovou que não eram seus. Parte dos meios de comunicação, não satisfeitos, acusaram-no de comprar um “barco de pesca”, como se fora um iate, que depois apurou-se custar R$ 4 mil. Finalmente, “noticiou-se” que ele frequentou o tal sítio algumas centenas de vezes, como se isso, por si só, já fosse um ato de deslavada corrupção.
Repare: não há comprovação de qualquer irregularidade. Os jornalistas, por preguiça ou vício, não investigam e replicam informações “sigilosas”, seletivamente vazadas pela Justiça. Não há juízo de fato. Há uma inversão das técnicas elementares de cobertura: parte-se do pressuposto que Lula é corrupto (juízo de valor) para depois se tentar comprovar a tese a qualquer custo.
O segundo caso diz respeito à amizade entre o papa João Paulo II e uma filósofa polonesa, naturalizada americana. Fotos e cartas pessoais foram expostas ao público sem qualquer cuidado, com o objetivo único de gerar polêmica mediante um possível escândalo, sugerindo que a relação íntima entre uma mulher casada e o líder máximo da Igreja Católica fosse um “caso conjugal”, como se fosse um crime moral tal convivência. Novamente, o carro adiante dos bois: por mais inusitada que seja a situação, a tese do “caso” é puro juízo de valor. Que a imprensa agora corre para tentar confirmar.
Enquanto as penas da irresponsabilidade voam pelas mídias, obedecendo critérios cegos pela soberba ou cínicos pelo interesse, a honra destas pessoas agoniza em praça pública, amplificados pela doença do ódio que circula nas redes sociais. Não há como mensurar quantas amizades íntimas existiram entre líderes espirituais e mulheres. Mas um papa recentemente acolhido como santo vira um prato cheio. No caso de Lula, o mais grave é perceber a assimilação da lógica hegemônica das classes dominantes. Quantos encontros, profissionais ou não, entre chefes de estado e empresários já ocorreram em restaurantes, casas, sítios e similares. Mas somente o ex-operário é foco de suspeição. Este jornalismo de quinta, pelo visto, criou uma nova categoria: o juízo sem valor.
* Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo
demetriofarias@gmail.com