Com o título “Onda nacional”, eis a crônica do jornalista Henrique Araújo, abordando o mar de lama provocado pela Samarco em dois Estados. Confira:
Há algo de tristemente simbólico quando um tsunami de lama mercurial atravessa dois estados, envenenando mananciais, devastando cidades e matando pessoas, e segue irrefreável em direção à praia. E não falo de significados mais evidentes, como a palavra lama num contexto de operação Lava Jato pode sugerir. Nem da expressão “mar de lama”, eternizada no gesto de autossacrifício de Getúlio Vargas décadas atrás, quando se viu acossado sabe-se lá por que ou quem. Tampouco me refiro à perigosa onda conservadora, tão antiga e violenta quanto a atividade de mineração nas terras das Gerais.
O pavoroso numa catástrofe como a de Mariana (MG) é essa quase confidencialidade que cerca o assunto e a sacralidade ao se pronunciar os nomes das empresas envolvidas, a Samarco e suas controladoras, a Vale do Rio Doce e a estrangeira BHP. É essa ausência de explicações e responsáveis por uma das maiores tragédias ambientais em décadas, que atinge cerca de meio milhão de pessoas e deve produzir estragos por muito tempo ainda. É o discurso tóxico que iguala PT (o governador de Minas Fernando Pimentel) e PSDB (o senador Aécio Neves): não é hora de procurar culpados.
Mas, se a hora não é agora, quem vai dizer ao pai internado num hospital que a morte de sua filha de cinco anos poderia ter sido evitada caso a companhia tivesse dado ouvidos a alertas feitos pelo Ministério Público três anos atrás? Tem algum CEO preparado para informar que o corpo de uma criança arrastado na lama foi um fenômeno da natureza e não responsabilidade dos homens? Alguém na Vale foi suficientemente treinado para mentir?
Melancólica e reveladora coincidência. Na mesma semana em que a barragem da Samarco se rompeu e ficou evidente que a mineradora não havia preparado um plano de evacuação em caso de acidente, colocando a vida de milhões em risco, a Rede Record conseguiu um feito: monopolizou as atenções da audiência nacional, pulverizada entre mil e uma atrações. A televisão do bispo consumou o seu sonho dourado: sobrepujou sua principal rival, a Rede Globo, alcançando média de 30 pontos no Ibope. Logrou esse êxito com uma cena icônica – a travessia do Mar Vermelho, uma passagem bíblica na qual, liderados por Moisés na fuga do Egito, os hebreus esperam um sinal divino, que vem sob a forma de uma fenda em meio às águas através da qual escapam. Estimada em R$ 1 milhão e finalizada em Hollywood, a sequência inundou as redes sociais, com dezenas de milhares de menções, e provocou uma avalanche de elogios por seu apuro técnico ao canal administrado por um grupo empresarial cujos interesses se originam em três negócios rentáveis: a fé, o entretenimento e a política.
Os brasileiros atingidos pela barragem da Samarco não puderam contar com a mesma sorte das personagens da novela: no último domingo, não houve quem, apelando aos céus ou a deputados, se interpusesse entre eles e a desgraça lamacenta e, com a força do cajado ou da ciência, criasse, no meio da onda, um ponto de fuga. Hoje, quase uma semana depois, ainda há desaparecidos, e os prejuízos são incalculáveis.
E é aí que tudo se encaixa neste país esquisito em que qualquer autoridade, pública ou privada, se sente à vontade para se fechar em copas quando o bicho pega e o presidente da Câmara assegura que se tornou milionário vendendo carne enlatada. De ponta a ponta, há muitas ondas varrendo o Brasil. A da lama. A do conservadorismo. A das mulheres. Fico com a última. E espero que as demais nunca cheguem à praia.
* Henrique Araújo,
Jornalista.