Com o título “Cicatrizes”, eis título do artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade. Ele usa cicatrizes que adquirimos ao longo da vida como fonte de aprendizado. Faz uma metáfora simples, mas rica por aguçar em nós o desejo do aprendizado e do amadurecimento. Confira:
Em meados dos anos 1990 sofri um grave acidente automobilístico, fruto de uma mistura irresponsável de álcool, sono e arroubo juvenil. Graças a Deus, nada com conseqüências mais sérias. Fiquei parcialmente fora de combate alguns meses até restarem enormes cicatrizes na perna direita, que me acompanham até hoje. Cito este exemplo para externar que às vezes costumo mapear meu corpo com o olhar para verificar outros registros.
Com 46 anos, tenho uma quantidade razoável de pontos, cortes e outras marcas, decorrentes da idade. Muitas delas representam recordações – boas ou más – de momentos de maior ou menor importância. Servem como alerta vivo, inclusive, sobre erros que não preciso mais cometer. A pele sentencia uma geografia muito peculiar em cada ser humano. A minha, com suas ranhuras, trato com muito respeito e carinho: significam que vivi, correndo riscos às vezes, é verdade, mas sem abrir mão de minhas buscas.
Desnecessário dizer que a alma também guarda suas cicatrizes, invisíveis e, ao mesmo tempo, indeléveis. À semelhança da pele, esconde ou mostra uma costura possivelmente até mais intensa, indo dos cuidadosos bordados à mão aos rasgos mais esgarçados. Recordações, segredos, desejos, traumas, culpas e aquela inescapável vontade de ser feliz e transformar tudo na mais linda colcha de retalhos.
Falo tudo isso observando uma sociedade que transformou em hábito inquestionável o tremendo esforço em apagar do rosto, mãos, cabelos, pernas e outras partes – sim, porque tratar uma parte como se fosse o todo é uma das melhores definições de fetiche que conheço – as linhas tão caprichosamente desenhadas pelo tempo.
Não condeno ninguém por querer preservar uma boa aparência. Mas quando isso se torna obsessivo, um exagero de plásticas, botox e outras intervenções – que quando em vez prejudicam a saúde física e mental destas pessoas –, acaba pondo a nu uma tentativa desesperada, inócua e imatura para evitar saudar a sabedoria do tempo.
Li certa vez uma assertiva bem humorada numa camiseta: “um homem sem barriga é um homem sem história”. Talvez estejamos numa época onde visitar o passado – ou admitir que temos um – seja quase uma condenação. Este mito da eterna juventude contraria o bem supremo da maturidade: o de olhar para trás para aprendermos a melhor viver, com menos peso, mais tolerância e mais amor, por si mesmo e pelo outro.
* Demétrio Andrade,
Jornalista e sociólogo.