Com o título “Os alquimistas estão chegando”, eis artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade. Ele aborda a polêmica em torno do comercial da Boticário que apresenta diversidade sexual em clima de Dia dos Namorados. Confira:
Impressiona a força que vem ganhando o discurso conservador na sociedade brasileira. Uma simples – e bela, diga-se de passagem – campanha de Dia dos Namorados da empresa de cosméticos Boticário, que mostra casais de várias orientações sexuais, virou alvo de protestos e ameaças de boicote nas redes sociais. Até denúncia ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) apareceu. A página do Boticário no Facebook também recebeu muitas mensagens de teor homofóbico, mas também muitos elogios à propaganda.
A campanha “Casais” estreou na TV aberta no dia 24 de maio, abordando, com sensibilidade, as mais diferentes formas de amor, independentemente de idade, raça, gênero ou orientação sexual. A propaganda não inventou nada. São situações comuns que existem no cotidiano de milhões de pessoas. Semelhante reação, no mesmo grau de estupidez, ocorreu quando da exibição de um beijo entre duas senhoras de idade numa novela da rede Globo. Paciência!
Falo como cidadão, professor e pai: é difícil não se revoltar com tamanha ignorância. Mesmo reconhecendo que tive uma criação eivada de preconceitos de toda ordem, sempre procurei apresentar aos meus três filhos e aos meus alunos a existência de uma imensa diversidade de opiniões, como forma, inclusive, de cultivar o respeito e a solidariedade. Para mim, esta é a única forma de fortalecermos laços de coesão comunitária, de lembrarmos uns aos outros que habitamos a mesma nave-mãe chamada Terra.
Afinal qualquer pessoa tem o direito constitucional de expressar sua opinião, defender sua visão de mundo e, principalmente, demonstrar seu afeto. Os meios de comunicação passaram décadas escondendo os mais pobres. Os negros. Os imigrantes. Os trabalhadores explorados. Os homossexuais. O nome disso é hipocrisia, fruto de uma visão de mundo autoritária.
Tal comportamento de rejeição à diferença deseduca e é absolutamente prejudicial à consolidação da nossa democracia. Mais grave ainda é usar o nome de Deus, a partir de um discurso religioso fundamentalista, para condenar com veemência uma campanha publicitária. Trata-se de uma demonstração inequívoca não só de preconceito, mas também de oportunismo, de atropelo da ética e, principalmente, de falta do que fazer. Aliás, quem mais deve se beneficiar com a ampla divulgação de reações tão destemperadas é a marca Boticário.
Lembro de um programa chamado “Grandes Momentos do Esporte”, da TV Cultura, que ao falar do inesquecível time do Santos de Pelé usou como fundo musical, num momento de rara felicidade, a canção “Os alquimistas estão chegando”, de Jorge Benjor, numa referência à magia e à arte compartilhada por aqueles jogadores. Não há como não fazer uma associação ao episódio aqui analisado: os alquimistas do Boticário tiveram coragem de fustigar a tristeza de quem enxerga o mundo de forma maniqueísta e quadrada, tentando transformar corações de pedra em ouro.
Portanto, cheguem mais alquimistas do Boticário. Para lembrar que Deus é amor. Que Ele nos colocou neste planeta na esperança de torná-lo melhor. Isso jamais ocorrerá com o uso sistemático da intolerância. Principalmente se descriminamos a virtude maior dos seres humanos, que é a sua capacidade de amar.
* Demétrio Andrade,
Jornalista e sociólogo.