Com o título “Precisamos reaprender a pensar”, eis artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade. Ele questiona o decoreba nas escolas, em algumas matérias, e destaca o papel importante do Enem, que promove o pensar por meio de questões interpretativas. Com direito a um paralelo no jornalismo. Confira:
Em meio às provas de final de ano, me vi estudando português com meu moleque. A sintaxe da nossa língua é de uma complicação digna de nota, com todo respeito aos fanáticos estudiosos da “última flor do lácio”. Estávamos tentando desvendar o profundo mistério de compreender o que seria uma “oração coordenada sindética adversativa” quando, num arroubo de coragem, ele perguntou: “Pai, isso vai me servir para quê, mesmo?”. Respondi em fração de segundo: “Pra nada, filho, absolutamente nada”.
O episódio me trouxe uma série de reflexões. A primeira delas diz respeito à quantidade de conteúdo que é repassado aos nossos meninos e meninas sem qualquer amparo no mundo real. Não faço aqui – que fique registrado – uma crítica às matérias que eram taxadas, em minha época de estudante, como “decoreba”. Até porque acho que boa parte do nosso aprendizado, formal e informal, depende o exercício da memória. O que me chama a atenção são quilos e quilos de páginas assimiladas –decorativas ou não – sem qualquer serventia prática.
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), neste sentido, representa uma evolução significativa. As provas cada vez mais apresentam questões interpretativas, forçando o aluno a aplicar o conhecimento adquirido para analisar situações reais. Isso é o futuro. Mais que reproduzir uma doutrina, é necessário pensar sobre ela, vê-la como um instrumento de interferência na realidade, usá-la para resolver nossos inúmeros problemas do cotidiano, ou mesmo desenvolver a capacidade de questionar sua pertinência.
É uma atitude conservadora pedir a um estudante para decorar a tabuada, posto que qualquer celular possui calculadora, ou que saiba de cabeça o nome da capital de um país, já que tudo está na internet. Mas é preciso que o aluno perceba a qualidade da informação, se ela tem lógica e validade. Em outras palavras, mais importante que decorar que 9 mais 9 é 18 é saber porque é este o resultado. E saber que a capital da França jamais poderia ser Buenos Aires, por ter noções gerais de geografia e da distribuição dos continentes.
A grosso modo, é possível fazer um paralelo com o jornalismo praticado atualmente. O acesso à informação nunca foi tão facilitado. Milhões de referências ao alcance dos dedos. Mas é impressionante como o contexto é cada vez mais desprezado. Há muito tempo os meios de comunicação se especializaram em repassar dados de forma imediata e sem a mínima dose de aprofundamento. Mas hoje isso chegou a proporções inimagináveis.
Tente entender, por exemplo, a votação sobre o superávit primário no Congresso. Algumas informações chegam. Você sabe que é um tema polêmico, que existe crise e que o governo ganhou. Mas o que diabo é superávit primário? Por que tanta confusão por parte da oposição? O que isso tem a ver com a vida comum de nós, cidadãos? Duvido que você, caro leitor, consiga responder a estas perguntas com propriedade.
Em outros termos, se não sabemos responder sobre a essência, teremos formadas opiniões restritas à superficialidade, à ideia vaga, ao senso comum. Uma aparência de saber, que distorce a realidade, limita questionamentos e propaga a ignorância. Aposto que boa parte da violência verborrágica das redes sociais seria pacificada se as pessoas se dessem ao trabalho de se perguntar quando em vez: “mas o que é isso, mesmo?”, “qual é o sentido desta discussão?”.
A avalanche de informações no ensino formal e nos meios de comunicação brutaliza mais que humaniza. Confunde mais que esclarece. É um fetiche de saber. Enquanto não percebermos isso e mudarmos tais concepções, continuaremos emprenhando “verdades” pelos ouvidos e reproduzindo sintaxes vazias.
* Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo.