Com o título “Em que momento perdemos a delicadeza?”, eis artigo do jornalista e sociólogo Demétrio Andrade. Ele aborda o cenário confuso e absurdo do trânsito de Fortaleza, onde cada um quer levar vantagem, deixando o pedestre à beira da calçada. Confira:
Cena comum em qualquer escola privada – principalmente as mais caras – de Fortaleza: carros estacionados em fila dupla ou tripla ou mesmo em locais proibidos, tornando o tráfego caótico e causando irritação logo nas primeiras horas da manhã. Detalhe: trata-se de um local no qual, teoricamente, as crianças deveriam ter noções de educação e civilidade. Ao contrário, vejo pais relapsos, com preguiça de andar duas quadras a mais, ensinando aos seus filhos, desde muito novos, que o mais importante é resolver o seu problema, nem que para isso seja necessário prejudicar o semelhante.
Aliás, quando se fala de trânsito, os exemplos se acumulam: pessoas estacionando em vagas de idosos e deficientes, parando – basta um segundo, aliás – em locais proibidos e causando engarramentos, deixando o carro em frente de garagens ou sobre calçadas, dirigindo em marcha lenta na faixa de velocidade ou em velocidade na faixa lenta, ultrapassando sinais vermelhos. No fundo, de forma premeditada ou não, todos eles estão gritando: “dirijo como quiser, transeuntes e motoristas que se lasquem”.
O pomposo nome “cidadania” usado por 10 entre 10 indignados quando se começa qualquer conversa e se passa a criticar principalmente o governo, vem da necessidade de pensarmos coletivamente ao se optar por morar em locais onde existe adensamentos populacionais, maiores ou menores, as nossas populares “cidades”. Ser “cidadão” significa compreender que o mundo não gira ao seu redor, que existem outros seres humanos com as mesmas – ou até bem maiores – necessidades que nós.
Outra palavra usada ad nauseam com gradiloquência é “ética”. Umberto Eco nos ensina que a melhor definição de ética é “pensar no outro”. Não há como ser ético se eu me fecho num mundo cercado pelo meu egoísmo. A religião tem um belo conceito, o da “misericórdia”, para explicar o que é “colocar-se no lugar outro”. Repare que não estou reivindicando que as pessoas repartam bens, sejam caridosas ou dediquem parte de seu tempo a obras sociais. Eu só queria que elas pensassem que a rua, e outros espaços públicos, é um local de todos. Que o elevador é usado por todos os moradores do prédio. Que há pessoas que precisam andar sobre a calçada.
Tudo isso, que parece elementar, virou raridade. Em algum momento, perdemos a capacidade de exercer a delicadeza. E o que é pior: não assumimos nossos erros. Afinal, é sempre mais fácil culpar o outro, o governo, a empresa que não funciona. Qual esperança estamos construindo para este país, para nossa cidade? Por que nos revoltamos tanto com a corrupção que passa na TV e, no dia seguinte, não nos damos conta que corrompemos as convicções de nossos filhos logo cedo, ao levá-los à escola?
Exercer a boa convivência é exemplo cotidiano. Por aqui, vou continuar exercendo a tarefa de não me dobrar a este individualismo insano. Não só por uma questão de princípios, mas, acima de qualquer coisa, para tentar preservar minha fé e minha esperança na humanidade.
* Demétrio Andrade,
Jornalista e sociólogo
demetriofarias@gmail.com
@demetrioandrade