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O cantor e compositor Chico Buarque fará shows, nos dias 25 e 26 de maio, no Siará Hall, em Fortaleza. O juiz estadual Mantovani Colares, que se define como “Chicolatra”, manda artigo para o Blog, com o título “Fecho os olhos; E vou destacando o talento desse brasileiro. Confira:
FECHO OS OLHOS; E VOU.
Mantovanni Colares
É um desafiador exercício – e provavelmente insolucionável – o de encontrar os reais motivos do frenesi causado pelo anúncio de mais um show de Chico Buarque, como esse a ocorrer nos próximos dias 25 e 26 de maio, em Fortaleza.
As razões primeiras, mais óbvias e apesar disso não satisfatórias, são a da distância entre uma apresentação e outra do Cantor (a última nesta cidade se deu em 2007) e a incontável legião de fãs que o acompanham desde os anos 1960. Tal resposta não elucida o mistério, já que muitos admiradores da obra musical buarqueana são jovens; bastantes jovens, eu diria. O hiato de apresentações ao vivo é um indicativo, mas certamente não é o único elemento propulsonador do fenômeno que faz esgotar em curtíssimo espaço de tempo os disputados ingressos.
Nas magníficas experiências que vivenciei mirando-o ao vivo – e já se vão sete shows degustados até o último acorde –, indagava aos mais jovens o porquê de se apreciar alguém tão distante cronologicamente de suas realidades. As respostas, embora de todo não convergentes, apontavam para um vetor, o da qualidade musical, decorrente da sensibilidade do Artista, a gerar um encantamento inexplicável.
Penso que esse é o caminho. Alguns costumam atribuir a seu viés político-contestador a simpatia que desperta nos que amargaram tantos momentos indesejáveis por conta da repressão em nosso país no final da década de 1960 e até o início da década de 1980. Quanto a mim, confesso que o repertório musical do Chico-político é o menos vibrante em meus arquivos sentimentais. Afeta-me particularmente o Chico-lírico, sua maestria para lidar com a eterna busca do encontro entre duas pessoas, desde os amores mundanos até os sublimes.
Essa identificação de qualquer um de nós com seus desabafos musicais pode ser também a chave desse segredo de sua imensa popularidade; além, é claro, de seu inegável charme, da sinceridade no que diz – até quando é insincero, como no “Samba do Grande Amor” –, e do imenso profissionalismo e seriedade com que ele encara o trabalho, inclusive o de fazer shows. Os espectadores estreantes ficarão positivamente surpreendidos com um artista preocupado em bem fazer sua proposta musical, sem estrelismo, sem afetações, em sinal de imenso respeito a seu público. A nossa sorte é que o Chico Buarque não tem a dimensão do que é ser Chico Buarque.
Os desavisados devem saber que o show “Chico” é temático. Podem ficar com inveja, mas já assisti ao seu novo espetáculo por duas ocasiões, a primeira no início da turnê, em dezembro de 2011, na cidade de Curitiba, e a segunda vez em março deste ano, em São Paulo; daí que posso dizer que o show foi arquitetado brilhantemente como meio de condução para divulgar seu mais recente trabalho musical (Chico, 2011, Gravadora Biscoito Fino), mas permeado por canções de outrora, todas de arrepiar, apresentando o tema único e inesgotável do amor em suas incontáveis possibilidades, desde a mais cândida à mais devassa, oscilando entre a paixão extrema e o cinismo incontrolável, como se poderá ver nas já conhecidas “Choro Bandido”, “O meu Amor”, “Anos Dourados” e “Sob Medida”; a enigmática “Ana de Amsterdã”; o delicioso xote “A Violeira” (com referência não só ao Ceará, mas também ao Crato e a Quixadá); uma versão desconcertante de “Cálice”, alinhavada com versos do rapper Criolo; a contagiante “Baioque” e seu final delicioso com a inserção de “My Mammy”, de Walter Donaldson, Joe Young e Sam M. Lewis, composta em 1918; a magistral apresentação em dupla com Wilson das Neves na mais que atual música de 1954 de Tom Jobim e Billy Blanco, “Tereza da Praia”, antecedida pelo samba do novo CD “Sou Eu”, que já virou um clássico, e para mim essa música representa a continuação de “Deixe a Menina” (de 1980, no então LP “Vida”), onde o marido não se conformava com a mulher tão desejada por tantos, até que finalmente se submete à realidade nesse novo samba, e suporta os explícitos assédios no salão de dança e também o jeito nada comportado da mulher, mas afirma: quem é que carrega a moça pra casa? sou eu!; e a sempre impactante “Geni e o Zepelin”, esta pela primeira vez trazida aos palcos sob sua voz, e para mim o ponto alto do show, pois a entonação crescente e dramática da música nos faz viajar pela história, como se fôssemos espectadores daquele bem narrado drama, e somos conduzidos a uma trajetória de instrospecção e êxtase, como a cadência musical sugere, e o tempo parece ficar paralisado na extensa cantiga reveladora da hipócrita sociedade na qual vivemos.
Ainda que alguém não esteja familiarizado com seu novo trabalho, terá uma imensa satisfação ao se deparar com a riqueza musical desse CD, que contém blues (“Essa Pequena”), baião (“Tipo um Baião”), moda de viola (“Querido Diário”), choro canção (“Se eu Soubesse”), samba (“Sou Eu”) e até marchinha (“Rubato”), essa para orgulho nosso em parceria com o cearense Jorge Hélder, integrante de sua banda musical.
Um destaque especial deve ser feito em relação à valsa “Nina”, pois nessa “valsa russa” – como o próprio Chico a batizou – tem-se a história de um amor virtual, onde ele mantém correspondência via computador com a Nina, e mesmo ao lado da modernidade não dispensa o uso da imaginação. É que não há ligações de câmeras nos computadores, não se sabe ao certo se por precaridade dos equipamentos dos amantes virtuais ou por imposição de um Chico recém-ingresso no mundo da informática, mas com as cautelas devidas.
Eis outro indicativo do magnetismo do Chico. Ele consegue desenvolver o lirismo musical em qualquer âmbito, inclusive no da modernidade, tendo como pano de fundo a nova forma de relacionamento entre as pessoas, nesta era atual, onde a internet praticamente dita as regras de convivência.
Nessa música, “Nina diz que tem a pele cor de neve / E dois olhos negros como o breu”, a demonstrar essa realidade limitada quanto à possibilidade de um saber com é realmente o outro, mas graças ao “google earth” se vê exatamente onde ela mora e até sua casa (“Nina diz que se quiser eu posso ver na tela / A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela”), mas ele terá que imaginar como é o interior da casa e outros detalhes tão relevantes para quem está apaixonado (“Posso imaginar por dentro a casa /A roupa que ela usa, as mechas, a tiara /Posso até adivinhar a cara que ela faz /Quando me escreve”). O final é delicioso. Ele arremata que, apesar da distância física e com a indicação de que dificilmente os dois chegarão um dia a se conhecer de fato – ele não irá à Rússia, e ela mesmo confessa não atrever a viajar num país distante como o Brasil –, o mundo virtual permite uma espécie de proximidade, pois o importante é a imaginação, e com ela também se viaja, ou seja, o deslocamento integra a fantasia. E o Cantor confessa: “Sempre que esta valsa toca / Fecho os olhos, bebo alguma vodca /E vou”.
É nesse paradoxo entre o mundo virtual e o real, e em meio a tanta valorização dos caminhos apresentados pela informática, que nos sentimos privilegiados por apreciarmos ao vivo esse gênio brasileiro, cantando e tocando, acompanhado de extraordinários músicos, porque é uma experiência real, a penetrar de modo definitivo nalgum recanto especial de nossa memória. E sempre que recordo os shows dele aos quais tive a regalia de presenciar – nas cidades de Fortaleza (nos anos de 1987, 1993, 1999 e 2007), Curitiba (em 2011) e São Paulo (nos anos de 2006 e 2012)–, quase consigo ver e ouvir tudo novamente. Quase, não. Fecho os olhos; e vou.
* Mantovanni Colares,
Juiz estadual, professor universitário, escritor e Chicólatra confesso.