Com o título “Para além do Bolsa Família”, eis artigo do professor universitário e sociólogo André Haguette, que pode ser lido no O POVO desta segunda-feira. Ele aborda o programa de renda mínima criado pelo governo federal. “Ir para além do Bolsa Família faz-se, portanto, necessário e urgente, embora somente ocorrerá se movimentos sociais e a sociedade civil organizada empurrarem os governantes a praticar intervenções políticas estruturantes capazes de incluir a todos na ordem econômica vigente”, diz o texto. Confira:
O programa Bolsa Família veio para ficar. E é bom que assim seja. Ele nasceu da Lei nº 10.836, que unificou os programas federais de transferências de renda já existentes: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Programa Nacional de Acesso à Alimentação e Auxílio Gás, que visavam dar assistência financeira a milhões de pobres e miseráveis no País. O programa, todavia, necessário ontem como hoje, se caracteriza por ser meramente compensatório, sem ter como finalidade promover políticas estruturantes capazes de incluir seus beneficiários na ordem produtiva vigente. Daí sua insuficiência. Frei Betto escreveu que “a estrutura social do Brasil, desigual e perversa, permanece intocada”.
Chico de Oliveira, por sua vez, explica que essa Lei é uma “espécie de derrota do apartheid”, já que “ao elegermos Lula, parecia ter sido borrado para sempre o preconceito de classe e destruídas as barreiras da desigualdade”. Mas o Bolsa Família, ao invés, “despolitizou a questão da pobreza e da desigualdade”, transformando-a num fenômeno burocrático, administrativo, “contábil”. Sim, o programa despolitizou, nutrindo o bolso, não a consciência crítica; tornou seus beneficiários dependentes do Estado e das eleições; e ainda dispensou ações realmente intervencionistas na forma de organização de nossa sociedade. Prisioneiros de suas bolsas, dependentes do Estado e dos governos para manter e ampliar o valor da bolsa, criou-se uma massa de manobra eleitoral. Se o lulismo apoia-se nessas classes trabalhadoras desorganizadas, desideologizadas e pragmáticas, outros partidos iludem-nas com promessas da manutenção do Bolsa Família e futuros aumentos do valor da bolsa, sendo politicamente útil a todos os partidos. O programa, decerto, alivia a miséria, mas cobra um custo alto: a autonomia cidadã.
Isso se deve, explica Carlos Nelson Coutinho, ao fato de o Bolsa Família ser obra da “pequena política”, o que ocorre quando a política não passa de disputa pelo poder entre diferentes elites, que convergem na aceitação da realidade social como ela é, sem visar sua transformação; aceitam a realidade como “natural”, tentam remediá-la mas jamais revirá-la. A “grande política”, ao contrário, visa o que interessa verdadeiramente ao conjunto da população; planeja e executa uma mexida nos arranjos societários causadores da pobreza e da desigualdade social, sem se satisfazer com soluções técnicas e administrativas.
Em agosto de 1981, bem antes, portanto, da criação do Bolsa Família, o sempre lúcido Beni Veras escrevia: “Se o nosso sistema econômico não é capaz de dar às nossas populações alguma forma honesta e correta de sobrevivência, o que se pode esperar delas? Ou uma revolta, ou o crime e o marginalismo”. Se a “pequena política” do Bolsa Família cancelou, ao menos por hora, a revolta, o crime e o marginalismo se espalham, de alto a baixo da estrutura social. Ir para além do Bolsa Família faz-se, portanto, necessário e urgente, embora somente ocorrerá se movimentos sociais e a sociedade civil organizada empurrarem os governantes a praticar intervenções políticas estruturantes capazes de incluir a todos na ordem econômica vigente. “O pior mal, escreveu Jean Paul Sartre, é aquele ao qual nos acostumamos”; nos acostumamos à miséria… dos outros.
André Haguette
haguetteandre@gmail.com
Sociólogo e professor da UFC.