Com o título “A Copa e a vergonha do amarelo”, eis artigo de Demétrio Andrade, jornalista e sociólogo. O articulista vai torcer pela Canarinho, mas sem vestir o amarelo, numa alusão ao cenário político do País. Confira:
Estou francamente otimista com a participação do Brasil na Copa. Acho este time o melhor que já vi desde o de 1982 – uma referência de bom futebol pra mim para o resto da vida. Em 2014, a despeito da euforia de sediar um mundial, tínhamos um treinador ultrapassado e um time fraco. Sem qualquer demérito pra quem é apaixonado pela seleção, para mim, comparados ao de 1982, os demais escretes – com raríssimas exceções – eram pífios. Assistia por que gosto muitíssimo de futebol, do evento, de beber com os amigos, mas sem muita paixão. Este ano, dá até pra torcer. Só não dá pra torcer de amarelo.
Antes que o leitor classifique precipitadamente tal julgamento como uma reação passional de um mero esquerdista revoltado com o golpe – que de fato sou – preciso esclarecer que tal decisão vai bem além disso. Meu instinto democrático, além de minhas leituras e práticas políticas, me ensinaram a respeitar pontos de vista diferentes. Mesmo discordando radicalmente delas, reconheço que as manifestações pró-impeachment tiveram um significado importante para história recente do país. E, além disso, ninguém é dono do verde, do amarelo, do vermelho ou de qualquer outra cor.
Porém – na vida sempre existem os poréns – analisando hoje friamente o que ocorreu, cada vez mais tenho convicção de que aqueles milhões de pessoas levaram à ruas – mesmo concordando que alguns tinham boas intenções – tudo o que me é digno de pena e repulsa, à exceção do combate à corrupção. Desde o simples analfabetismo político, passando pelo oportunismo rasteiro, indo até a ode à ditadura militar.
Aqueles milhões de pessoas, acreditando que estavam exercendo um imaculado civismo – talvez usando termos como política, ética e cidadania pela primeira vez em suas vidas – ajudaram a criar uma onda tosca de conservadorismo e repressão, questionando avanços fundamentais num país gigantescamente desigual e injusto como o nosso.
Entraram no rolo do ódio dos “manifestoches” os direitos humanos, as conquistas do público LBGT, cotas em concursos para negros, programas sociais de distribuição de renda para pobres, políticas educacionais inclusivas, liberdade de debate de conteúdo de professores em escolas, respeito aos cultos religiosos, tolerância com o comportamento sexual alheio, existência de partidos e sindicatos, leis trabalhistas e tantos outros avanços.
Esta carga simbólica é muito negativa e muito recente pra mim. Não vou nem falar da CBF, este antro de múmias desonestas. O que não quero mesmo é botar uma camisa amarela agora e ser confundido com estes tipos que cultivam a acefalia cultural e política. Alguém poderia contra-argumentar dizendo que isso é besteira, já que não vou deixar de usar meus gloriosos e sofridos mantos do Fortaleza e do Vasco não obstante as torcidas de ambos os times com certeza conterem milhões de reacionários.
Pois eu digo: nenhuma destas camisas de clubes foi maculada sendo usada como marca de um golpe que reuniu o que há de pior no pensamento político: fascismo, repressão, violência e autoritarismo. E que jogou, de forma irresponsável, um país ajustado economicamente, com prestígio internacional crescente, com avanços sociais incontestáveis, numa crise aguda, ferindo talvez de morte nossa tão combalida democracia. A rigor, nosso linguajar cotidiano bem que podia, a meu ver, já carimbar a expressão “amarelo de vergonha”.
*Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo.