Com o título “Virtus Unita Fortior” ou “Virtus Impavida”: Como a Chacina do Benfica Pode Nos Ajudar a Entender o Latim Ensinado na Universidade Federal do Ceará”, eis artigo que nos manda o professor José Raimundo Carvalho – FEAAC/UFC & CAEN/UFC. Ele comenta o caso da Chacina do Benfica e cobra nota da Universidade Federal do Ceará. Confira:
A Universidade Federal do Ceará adota como lema a frase em latim “Virtus Unita Fortior” que significa “A Virtude, Unida, É Mais Forte” (data venia aos colegas do Centro de Humanidades da UFC, especificamente aqueles(as) com conhecimento em literatura e letras vernáculas, pelo atrevimento plebeu de um professor de Economia da UFC). Nossa UFC surgiu de uma luta, de um verdadeiro ato de coragem. O principal artífice da fundação da primeira universidade do Ceará foi o eminente Antônio Martins Filho, tornando-se “O Reitor” da vindoura instituição quando da sua fundação em 1954. Antônio Martins foi professor do Liceu e de outras instituições de ensino de Fortaleza e em 1945 se tornou Professor Catedrático por concurso e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará. Em 1948 chamou para si a liderança no processo de criação da antiga Universidade do Ceará, e não se furtou ao embate intelectual e político na revista O Cruzeiro contra o pernambucano Gilberto Freire que defendia que a Universidade do Recife (atual, Universidade Federal de Pernambuco) era suficiente para a região. Interessante: o lema da UFPE é “Virtus Impavida”, ou seja, “Virtude sem Temor”: aí está uma grande ironia como logo veremos.
O nosso primeiro Reitor era simplesmente isso: um grande empreendedor e intelectual corajoso, um homem de ação. Prevaleceu a visão de Antônio Martins, nos desgarramos dos pernambucanos, e a UFC foi criada. Estamos em 2018, e os desafios são outros bem menos sublimes do que a criação de uma universidade, mas não menos contundentes e importantes para a sociedade cearense. Na noite de sexta-feira, 9 de março de 2018, sete pessoas foram mortas na quarta chacina registrada neste ano no Ceará. A matança iniciou-se na Praça da Gentilândia, no bairro Benfica, em Fortaleza. Não vou repetir os detalhes horrendos, já fartamente noticiados, porém vou discorrer sobre alguns fatos sorrateiramente “empurrados para debaixo do tapete” e, certamente, recebidos com êxtase pela gestão da segurança pública do Ceará. O que quero falar não é bem do que aconteceu ou de ações, mas de omissão.
Fato 1: A Praça da Gentilândia é local frequentado maciçamente por estudantes da UFC, principalmente às sextas-feiras à noite, que lotam a praça e seu entorno cheio de “barzinhos”, sorveterias, restaurantes e outras amenidades. Ou seja, historicamente toda aquela região é um verdadeiro espaço de boemia, liberdade e lazer para centenas de estudantes da UFC, do IFCE – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, de escolas de ensino médio e do público em geral. Eu mesmo e vários dos meus colegas docentes da UFC frequentávamos quando éramos estudantes.
Fato 2: A Praça da Gentilândia fica atrás da Reitoria da UFC, ao lado do IFCE, em um bairro típico da classe média. Em linha reta a distância da praça ao prédio da Reitoria da UFC é inferior a 200 metros.
Fato 3: Um estudante de pós-graduação da UFC foi vitimado na chacina e ainda se encontra em coma com uma bala alojada em sua cabeça.
Fato 4: Até o momento, a UFC sequer se pronunciou sobre a Chacina do Benfica, seja através de uma entrevista, ou mais adequadamente, através de uma Nota.
Por que? Por que a UFC e/ou os(as) professores(as) do aluno vitimado não falam nada, não demonstram o mínimo de compaixão, respeito e dignidade? Em nome de que ou de quem esse silêncio interessa? Em benefício de que processo ou embate político esse correr “em cima do muro”, feito garoto danado que rouba uma “fruta da árvore da subserviência a um governo” beneficia? Qual o verdadeiro papel de homens e mulheres que são (ou apenas, estão) professores e/ou gestores da UFC? A quem interessa essa omissão transvestida de “neutralidade”?
A UFC se omitiu, e o fez de uma maneira singular, expondo um viés egoísta, antecipando preferências políticas, afrontando a democracia, fazendo pouco do bom senso e da sensibilidade da sociedade cearense e desumanizando seus alunos e alunas, incluindo as vítimas da chacina. Sim, desumanizando, pois não divulgar uma Nota repudiando o fato, se solidarizando com as vítimas e suas famílias e exigindo medidas efetivas do governo estadual para parar de vez o caos e descontrole homicida no Ceará significa exatamente isso.
Será essa omissão fruto do medo? Acho que não. Se fosse medo, seria até compreensível, pois o “medo tem alguma utilidade, mas a covardia não (Gandhi)”. E é uma omissão palidamente cor-de-rosa e do tamanho do prédio construído no terreno comprado do Dr. José Gentil Alves de Carvalho.
Eu convido a UFC a lançar uma “Nota de Repúdio à Violência no Ceará”. A UFC precisa lançar essa Nota, ser coerente e digna da sua grandiosa reputação. É imperioso sair dessa neutralidade que rasga o legado do Prof. Antônio Martins Filho. A UFC urge exorcizar esse torpor e paralisia que se instalaram no estado do Ceará e em si mesma por causa da crise homicida. Professoras e Professores, não bastam conversinhas de “intelectuais de botequim” regadas a vinho francês e petiscos saborosos, sempre acompanhadas de utopias sociais e bravatas revolucionárias que não resistem a um simples convite à realidade. Essas verborragias não convencem mais nossos(as) alunos(as), nem nossa sociedade, nem mesmo nossos pais ou amigos(as), mas seduzem gestores públicos irresponsáveis e, pior, produzem mortos.
A nossa garbosa UFC sempre foi e será uma instituição que nos representa, mas não se esquivando da realidade e deixando seus estudantes à mercê de homicidas. “Hoje a tristeza não é passageira …”, Professores e Professoras. Vamos juntos reagir, liderar, fazer o que a estatura da nossa universidade nos impõem. Vamos juntos sair desse inferno para onde a população cearense foi empurrada com ações corajosas e de interesse público, e não com omissão. Dante Alighieri nunca foi tão moderno: “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise. ”. Mas ok, nem tudo está perdido, vamos rumo ao Paraíso de Dante, passeando na Via Láctea da Legião Urbana … “Eu nem sei por que me sinto assim, Vem de repente um anjo triste perto de mim, E essa febre que não passa, E meu sorriso sem graça, Não me dê atenção, Mas obrigado por pensar em mim e [ler meu texto]”. Opa! Quase esqueço: até o fim dessa crise homicida, “Virtus Impavida” é o meu lema!
*José Raimundo Carvalho
Professor da UFC