Com o título “Trump, o destruidor”, eis artigo do advogado e professor Marcelo Uchôa. Uma crítica ao “arrogante Trump, que, com sua brutalidade de estilo, acabou desacreditando, ou melhor, desmoralizando, a capacidade de resolutividade do próprio sistema universal das Nações Unidas”, diz o articulista. Confira:
Em 1945, no preâmbulo da histórica Carta que instituiu a ONU, as nações
signatárias reunidas em São Francisco zelosamente salientaram que a organização
internacional que então gestavam almejava, dentre outros fins, preservar as gerações
vindouras do flagelo da guerra, a partir de um esforço multilateral de convívio, com
base em tolerância, vida pacífica e união para manutenção da paz e da segurança
coletiva. Reafirmaram a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e valor do ser
humano, na igualdade entre sexos e gêneros, e na justiça em tratamento entre nações
grandes e pequenas, com respeito ao direito internacional. Consentiram que, a partir
dali, o uso da força armada seria entendido como recurso excepcional, a ser acionado
apenas em casos de interesse comum. As ideias anunciadas preambularmente
fundamentaram a Carta das Nações Unidas e, doravante, imprimiram caráter a outras
dezenas e dezenas de convenções nos sistemas global e regionais atualmente em
vigência.
Não obstante, no último dia 19 de setembro, transpirando uma soberba capaz de
indignar o mais apaziguador dos pacifistas, um arrogante presidente dos EUA, Donald
Trump, proferiu, em plena tribuna da Assembleia Geral da ONU, durante a abertura da
72ª sessão anual em Nova York, um ultimato à Coreia do Norte anunciando que não
hesitará em destruí-la completamente, caso não suspenda de imediato seus projetos
nucleares. Será o destino do país “se o governo depravado do homem-foguete” (Kim
Jong-un) continuar com “esta missão suicida, para si e seu regime”, palavras do
encolerizado presidente estadunidense. No decorrer do discurso, não faltaram
alfinetadas em Rússia e China, e fortíssimas doses de destempero contra Irã, Cuba e
Venezuela. Os presentes passaram pelo embaraço de ter que escutar desvarios do tipo “a minha política é a dos Estados Unidos em primeiro lugar” e “há muitos lugares no
mundo em conflito, alguns deles, de fato, vão para o inferno”.
Em resumo, Donald Trump constrangeu as Nações Unidas. Antes desconhecesse
o papel da ONU, mas tanto conhecia que a criticou por não endurecer o suficiente com
países desalinhados ao seu modo de operar politicamente. Longe de se fazer de rogado,
aproveitou a ocasião para reiterar sua promessa de descumprir, não subscrever, e, em
alguns casos, até rever tratados multilaterais capitaneados pela organização, porém,
segundo sua análise, em desagrado dos EUA. Não se desconfortou sequer quando se
lamuriou de supostas vultosas somas que seu país tem que arcar por responder pela
maior quota-parte de manutenção orçamentária da ONU, o que para um bom
entendedor, já é prenúncio do eventual tratamento financeiro que poderá vir a dispensar
à organização. Evidentemente que não comentou sobre as “compensações” recebidas
por força desse maior desembolso: a vaga de membro permanente no Conselho de Segurança, o controle de fato do FMI, Banco Mundial, etc.
Prepotência à parte, por mais que possa parecer inacreditável, o que mais chocou
na postura do presidente dos Estados Unidos na Assembleia Geral não foram as ríspidas
palavras desferidas contra este ou aquele país, nem as tradicionais provocações
direcionadas a mandatário A ou B. Nada foi tão impactante quanto a propositada
ausência de lhaneza demonstrada com a própria organização internacional, por outro
ângulo, a humilhação, o desprezo que o conjunto de nações recebeu justamente da
potência que deveria dar o exemplo. Donald Trump não negou a ninguém que descrê na
capacidade da ONU de encontrar saídas mediadas para conflitos entre Estados, mesmo
que, de sua parte, ele tampouco tenha demonstrado, em algum momento de sua
participação na Assembleia Geral, interesse de dialogar mais ou menos, tanto que não
deixou à Coreia do Norte ou aos demais implicados nos temas que abordou alternativas
além das que unilateralmente já havia decidido.
Lamentável, pois o fim do diálogo e o uso sucessivo da força na resolução de
conflitos internacionais significa a falência das Nações Unidas. Sintetizando, é optar por
desfazer-se de tudo o que a sociedade internacional conseguiu construir de avanço
civilizatório, ao longo de décadas, em termos de direito internacional e diplomacia. Bem
ou mal, após séculos de acumulação de dor e sofrimento vividos ainda neste instante
pela humanidade em decorrência de guerras, opressões sociais, intolerâncias das mais
diferentes espécies, catástrofes sociais, etc., as Nações Unidas são uma esperança de
resolutividade. Não por acaso, ali estão quase duas centenas de membros plenos, fora
observadores. Jamais uma nação membro se retirou da ONU, o que, por si, demonstra a
expectativa que gira em torno de sua existência. Com efeito, já teria sido um abuso se o
candidato a dono do mundo houvesse utilizado o Salão Oval da Casa Branca para
proferir seus impropérios. Não poupar, porém, as demais nações soberanas de seu
espetáculo grotesco protagonizado em plena tribuna da ONU, com o gravame de
tripudiar do sistema universal, isso, sim, foi um acinte inaceitável, uma ofensa
absolutamente indesculpável.
*Marcel.o Uchôa
Professor de Direito Internacional Público da Universidade de Fortaleza. É mestre e doutor em Direito. Autor do livro Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2013. É Advogado de Uchôa Advogados Associados.
marceloruchoa@gmail.com