Com o título “Nosso infinito são os gênios, como Belchior”, eis artigo do juiz estadual Mantovani Colares. Ele conta sobre encontro que manteve com o artista e uma dúvida sobre letra de um dos sucessos desse compositor que, sem dúvida, deixa lacuna enorme na MPB. Confira:
Mantovanni Colares
Há bastante tempo, num dos papos boêmios que tive com Tarcísio Tavares, o “Tetê das madrugadas”, o homem que inventou a publicidade no Ceará com toques de extrema inteligência, em determinado momento começamos a falar sobre música, e eu fiz referência a Paralelas, do Belchior, para mim uma das grandes composições brasileiras. E falei de minha estranheza quanto às duas versões de uma parte da letra, porque a Vanusa, ao gravá-la, em meados dos anos 1970, logo após os versos “Copacabana esta semana o mar sou eu”, canta: “E as borboletas do que fui pousam demais / por entre as flores do asfalto em que tu vais”, e todas as gravações posteriores – inclusive a do Belchior, os versos foram trocados por esses: “Como é perversa a juventude do meu coração/ Que só entende o que é cruel, o que é paixão”.
O Tetê olhou para mim e disse que não sabia disso, nunca se atentara para esse detalhe. Fez uma pausa, e disse: “só tem um jeito de saber, vamos perguntar ao Belchior”. Eu já esquecera aquele papo, coisa de noite boêmia, imaginava, quando recebo a ligação do Tetê dizendo que estava marcado nosso almoço. Que almoço, indaguei? com o Belchior. Pausa. E era verdade. Tive esse privilégio de almoçar em frente ao grande artista, e Tetê ficava me olhando, apelando com o olhar para eu fazer a indagação. Ele deu o mote: “Mantovanni, conta aquela história da música Paralelas”… fiquei ruborizado, e ao invés de indagar sobre a mudança dos versos, disse ao Belchior de minha imensa admiração pela música, a junção da matemática e o lirismo, a cena dos pneus rasgando a rua molhada e levando as paralelas do desencontro ao infinito amor.
Eu simplesmente considerava um toque de gênio imaginar a cena de alguém após uma briga de amor fugindo de carro em alta velocidade, e no asfalto, chão molhado, os pneus traçando duas paralelas, e como aprendemos que as paralelas no infinito se encontram, o abandonado abre a janela no oitavo andar e grita: “Teu infinito sou eu!”, a mostrar que tudo que se fizesse a partir dali, até a fuga, levaria ao inevitável amor. “Teu infinito sou eu!” um desesperado mas verdadeiro lema dos que se sabem insubstituíveis.
Belchior deu um sorriso largo, nunca esquecerei. Tetê, impaciente, me instigou, “sim, mas eu quero saber é o negócio da mudança da letra”. Não teve jeito. Constrangido, cabeça baixa, falei sobre a mudança dos versos. Belchior ficou sério, não sisudo, mas de uma seriedade que só depois entendi – a seriedade dos honestos. E disse que mudara os versos porque de certo modo ele se inspirara em Henriqueta Lisboa, que na cabeça dele gravitavam as palavras de “borboletas do campo na cidade de asfalto”, e ele temia que um dia o acusassem de plágio, então resolveu mudar, mas não sabia que a Vanusa já concluíra a gravação em estúdio com a letra original, então essa foi a única gravação que ficou com os versos originais.
Mudamos de assunto, me arrependi de ter indagado isso, quem sou eu para questionar os poetas, ainda mais aquele a quem tanto admirava, mas não percebi nenhum rancor da parte dele, ao contrário, na despedida ele me disse que era muito gratificante para um artista saber que alguém percebia os detalhes da criação, como foi meu caso em Paralelas. É óbvio que corri atrás de saber quem era Henriqueta Lisboa, e descobri ser uma poeta mineira do começo do século XX, mas meu maior espanto foi o de perceber que não há, nem de longe, qualquer semelhança entre os versos. Só a ideia de borboletas no asfalto, só isso. Nada mais. A poesia de Henriqueta Lisboa se chama “Imagem”, e os versos são “Caminhei entre os homens / num silêncio consciente, / harmonioso e tenaz. / Palavras que eu sonhara / na cidade do asfalto / pareciam esquivas / borboletas do campo”.
A partir dali percebi a honestidade intelectual desse gênio chamado Belchior, e que por excesso de cuidados alterou a própria letra de uma das mais extraordinárias canções brasileiras, embora não houvesse a menor necessidade da alteração, mas são nesses detalhes que se captam a grandiosidade do mito, do artista, do gênio. Nosso infinito lírico será sempre pessoas singulares como você, Belchior, por onde tracejam as paralelas de quaisquer pneus nas águas das ruas desta estrada chamada vida.
*Mantovanni Colares,
Juiz estadual, professor e escritor, e muito orgulhoso por ser cearense como Belchior, que se foi, mas sua luz, jamais.