Com o título “Brasil: o monstro frankensteiniano ou os filhos abandonados da pátria que os pariu”, eis artigo do professor João Aruda (UFC). Ele aborda o samba-enredo vitorioso da Beija-Flor, no Carnaval do Roo 2018. Confira:
Na quase manhã de terça-feira, 13, na Marquês de Sapucaí, a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, com um desfile primoroso e irretocável, impactou profundamente milhões de brasileiros que assistiam ao desfile das Escolas de Samba, não só pelo samba enredo ontológico, mas pelo comovente grito de alerta, denunciando a tragédia frankensteiniana chamada Brasil. Foi uma crítica radical e sem concessão!
Ainda na concentração, nos acordes iniciais da bateria, já era visível a empolgação dos presentes com a temática da Escola. Durante toda a evolução da Beija Flor, o povo presente nas arquibancadas da Sapucaí delirava em êxtase. Esse processo prolongou-se até a abertura dos portões, quando dezenas de milhares de espectadores invadiram a passarela e, em um rápido processo de autoidentificação com o filho sofrido, rejeitado e perseguido, denunciado no samba enredo da Escola, em delírio e de maneira uníssona, passaram a entoar com emoção e lágrimas a música, que denunciava a nossa insuportável tragédia.
Sem sombra de dúvidas, os carnavalescos e compositores da Beija Flor conseguiram construir, com muita competência e uma aguçada sensibilidade histórico-sociológica, um raro produto da fusão da poesia engajada com a estética carnavalesca. Nessa síntese, os compositores da Escola fizeram uma consistente analogia entre o romance Frankenstein, da escritora britânica Mary Shelley, e a nossa macabra estrutura social, caracterizada pela rejeição e abandono das suas crianças, pela banalização da violência que a todos atinge, por uma perversa exclusão social, por múltiplas e odientas discriminações e por uma criminosa corrupção endêmica que contamina todo o tecido social brasileiro.
Esse grito coletivo de revolta merece uma profunda reflexão por parte dos brasileiros que ainda insiste em manter acesa a chama da esperança no porvir e cultiva uma inabalável convicção de que podemos reverter essa perversão social, construindo uma sociedade justa, solidária e fraterna.
Na verdade, o samba-enredo não disse novidade alguma. Ele simplesmente desnudou, com muita competência, o óbvio ululante, como diria se vivo estivesse, o saudoso Nelson Rodrigues.
Vivemos a mais grave crise de anomia da nossa história. É o resultado de mais de 500 anos de grandes deformações da nossa estrutura social. Nossos valores, inclusive os éticos e morais, foram relativizados. Estamos perdendo nossos referenciais em nossas relações cotidianas e já não se sabe mais distinguir o certo do errado. A violência chegou a um nível inadmissível. A periferia das grandes e médias cidades brasileiras está dividida em territórios sob o comendo do narcotráfico, prova inconteste da falência do Estado.
E a crise vem se agravando em um processo crescente. Nos últimos governos, a nossa corrupção endêmica institucionalizou-se como política de Estado. A atividade política foi nivelada por baixo e os poderes da República entraram em crise, apodrecidos pela lama infecta da corrupção. A Presidência da República foi assaltada por vândalos da pior espécie. O Legislativo está dominado por mais de trezentos picaretas corruptos, que fazem do mandato a grande oportunidade de se locupletarem, protegidos pelo manto do foro privilegiado. O Judiciário, o último guardião da República, perdeu a sua legitimidade sob a suspeição de parcialidade nos julgamentos, de tráfico de influência, de práticas corporativas imorais, de inoperância e lentidão em seus julgamentos e de proteção aos criminosos do colarinho branco. O Judiciário vem perdendo, há muito, a confiança que o povo do brasileiro lhe depositava.
A hora é de ação. Não podemos ficar indefinidamente esperando por um milagre dos céus. Um grande pacto social para a reconstrução da nossa sofrida e dilapidada nação se faz imperativo. O momento exige maturidade e despojamento das vaidades. Exige grandeza e humildade de todas as forças vivas da nação, independente das suas matizes ideológicas, para a construção de um porvir mais promissor.
Temo que, se não fizermos urgentemente a nossa parte, o amanhã poderá ser tarde demais.
*João Arruda,
Professor da UFC.