Com o título “Bater ou debater? Eis a questão…”, taí o artigo semanal que o jornalista e sociólogo Demétrio Andrade manda para o Blog. Ele aborda o cenário do contraditório na sociedade com seus temas e debates e cita a polêmica em torno de uma comunicadora e o caso de jovem nu e acorrentado a um poste. Desnundando estigmas, preconceitos? Confira:
Durante muitos anos, quando participava – mal e porcamente, diga-se de passagem – do movimento estudantil na Universidade Federal do Ceará, acreditava que era fundamental para qualquer debate a compreensão ideológica da conjuntura: quem falava, com qual interesse, por qual posição política. A cartilha marxista exigia dos militantes de esquerda uma saudável criticidade e, ao mesmo tempo, uma vigilância ativa sobre as opiniões contrárias.
Passados os anos e vendo Lula e Dilma no poder, observo que este hábito – ou vício – foi barbaramente ampliado. Saiu das rodas acadêmicas e bares, ganhando a grande imprensa e as redes sociais. Qualquer que seja a questão, há uma preocupação tácita em classificar – ou desclassificar – o argumento ou o debatedor: direita ou esquerda, conservador ou progressista, reacionário ou revolucionário. Tais adjetivos, apesar de ajudarem a situar alguns papéis sociais dentro de uma conjuntura complexa, acabam por apresentar limites claros ao aprofundamento de polêmicas ou mesmo à realização de algumas boas idéias.
Por um lado, continuo achando importante reconhecer e explicitar posições ideológicas. Acho bem mais honesto, do ponto de vista da política, quando pessoas, instituições e mesmo veículos de comunicação defendem claramente seus pontos de vista. Considero positivo retirar da imprensa o papel de vestal da imparcialidade e da objetividade. A população tem o direito de saber de onde veio e porque uma determinada matéria foi ampliada, reduzida, prolongada ou censurada.
Por outro, é tedioso acompanhar qualquer debate no qual os envolvidos agem como torcedores de times de futebol: quem está comigo é bom, quem está contra mim é ruim. Paciência. Fica evidente que a discussão não chegará a lugar algum. Mais do que isso: em pouco tempo, é comum observar o ódio destilado pelas palavras, iniciativas interessantes sendo abandonadas sem serem devidamente examinadas – porque pertencem à posição A ou B – e a democracia, o respeito ou outro e a liberdade de expressão sendo vilipendiados.
Não vou usar aqui como exemplo os embates entre oposição e governo. Prefiro citar algo que considero mais grave. Em comentário feito na noite de 4/2, no Jornal do SBT, a apresentadora Rachel Sheherazade defendeu a “justiça” feita pela própria população aplicada a um adolescente de 16 anos acusado de cometer furtos no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. O garoto foi preso nu a um poste com o pescoço acorrentado por uma trava de bicicleta, além de ter parte da orelha cortada.
Rapidamente, apareceram milhares de pessoas nas redes sociais condenando ou exaltando tal posição. Pouco foram os argumentos razoáveis. O que vi foi o ódio escorrendo pelos dois lados. Num contexto dominado pela violência, é natural que a população se revolte. Dentro de um contexto específico, num momento de raiva ou agindo sob violenta emoção, é possível que alguns apelem para o linchamento como alternativa. Mas defender isso de forma fria, num veículo de abrangência nacional, que se beneficia de uma concessão pública, chamando o jovem de “marginalzinho” e aconselhando quem é contra a “adotar um bandido” é incitar o crime, rasgar a Constituição e negar princípios elementares de humanidade.
Jamais defenderia, igualmente, a cassação do direito de a apresentadora ressaltar seus pontos de vista. Desde que dentro de limites éticos razoáveis. E jamais usaria adjetivos que denegrissem sua honra. E faria isso não porque ela é uma comunicadora reconhecida. Faria simplesmente porque por trás da sua lógica de pedra preconceituosa, há um ser humano. Assim como havia um ser humano no jovem linchado, mesmo com tantas passagens pela polícia. O faria nem que fosse para me diferenciar dos animais.
O detalhe mais significativo disto tudo? A violência, suas causas, conseqüências e ações práticas para inibi-la passaram ao largo. Novamente.
* Demétrio Andrade
Jornalista e sociólogo